Biblioteca da sociedade de debate mais prestigiada do mundo, a Oxford Union, que faz parte do Cherwell College da Universidade de Oxford. Foto Bodleian Libraries Weblog/Reprodução| Foto:

Os que queimam os livros sabem o que fazem.

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George Steiner

 

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Com muito boa vontade e um tantinho de suspension of disbelief, até seria possível entender o que o governo sugere com a ideia de “descentralizar o investimento em faculdades de filosofia e sociologia”, para redirecioná-lo aos cursos que geram “retorno imediato ao contribuinte”. O brasileiro se acostumou a ser contribuinte ou consumidor; cidadão, no sentido forte da palavra, quase não se vê por aqui.

Em tese, ciências exatas ou técnicas “dão resultado” – e resultado imediato. Empregam gente. Humanidades, não. Mas simplificações são perigosas. Humanidades não precisam nem devem mesmo ser “úteis”. O espírito da educação liberal e da erudição se opõe ao da utilidade imediata. Aprender grego e ler os diálogos platônicos leva tempo e é inútil, mas é disso que se trata quando se fala em alta cultura, tradição e conservadorismo. O que não é útil, portanto, é o próprio conceito de utilidade.

Que não se enredem na armadilha fácil do louvor ao autodidatismo. Essa atitude é importante, está presente na vida do estudioso como uma espécie de ética vocacional, mas o desenvolvimento dos estudos filológicos e o crescimento exponencial da bibliografia inviabilizam o do beletrismo e o espírito bacharelesco.

Nas universidades – não nos cursos online – são produzidas as mais rigorosas traduções em ciências humanas, com fartura de notas, referências, comentários e bibliografia. Isso é resultado de uma comunidade acadêmica consistente e preparada, a despeito do brilho individual deste ou daquele.

Importa considerar também que não vivemos mais na idade do ferro, nem na era indústria. O universo das ciências técnicas ou científicas é cada vez menos determinado e circunscrito, e as ciências físicas se desmaterializaram. Tornaram-se mais… humanas. O futuro do trabalho não parece ser o das fábricas e dos grandes projetos de engenharia, mas um futuro menos material, mais informacional – um trabalho mais inteligente e fluido.

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Tem sido cada vez mais comum que filósofos prestem consultoria, antropólogos elaborem políticas de impacto público imediato, engenheiros especulem na bolsa de valores. O momento é de complexidade, nos termos de Edgar Morin, de tendência à polimatia, e não o contrário. Já faz tempo que se tornar advogado ou médico com a intenção de melhorar de vida virou coisa de uma vida cada vez mais antiga, semelhante àquela descrita nos romances de Machado de Assis.

Seja como for, o apelo ao resultado imediato para o contribuinte trai intenções pouco nobres de fundo. Ora, não deixa de ser um claro sinal de dirigismo, muito parecido com a ortodoxia comunista dos nossos avós, segundo o qual a economia importa mais que qualquer outra coisa, a nação tem um mundo a conquistar, e cabe ao Estado indicar aos súditos os estudos realmente importantes.

Falei de ortodoxia comunista, poderia ter falado de ortodoxia militar. Uma das críticas recorrentes aos militares brasileiros no período pós-64 não é justamente esta – eles investiram em economia e infraestrutura e deixaram as ciências humanas sob a tutela de comunistas e revolucionários? Pois o mesmo erro seria cometido ao desmantelar os cursos de filosofia em sociologia.

Confesso, para o bem da verdade, que tenho minhas ressalvas a respeito de todos os programas de ensino – este atual e quaisquer outros, passados ou futuros –, porque existe algo de muito íntimo, pessoal e intransferível no aprendizado. Posso não querer estudar isso ou aquilo, ponto. Eu mesmo não me entusiasmo com a carreira universitária.

No entanto, há senões. Essa minha visão – digamos, libertária – é bastante pessoal. Não cabe ao Estado reproduzi-la em massa. Só faria sentido se fosse tentada num momento histórico-cultural mais propício, com alguns fundamentos devidamente assentados. O Brasil sofre de analfabetismo em sentido estrito e em sentido lato. Os índices de aprendizado em todas as áreas são deprimentes.

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Diante desse cenário, estou certo de que rupturas pedagógicas e realocação drástica de recursos fariam muito mal. Além disso, os convocados a revolucionar o ensino não parecem competentes para tanto. Tudo está sendo pensado (pensado?) às pressas, ao calor da polêmica. É provável que troquem uma ideologia (de esquerda) por outra (bolsonarista, mais que direitista).

O atual modelo universitário é ruim? Melhoremos o modelo. Isso demanda estudos prolongados e embasamento técnico. Os grandes centros produtores de conhecimento funcionam assim, não no achismo.

Não deixa de ser irônico que a reorganização do investimento nas disciplinas indique, por si só, um tipo de intervenção que deveria ser evitada por quem se diz contra grandes intervenções do Estado na vida das pessoas. Se querem mesmo ser radicais, eu preferiria que todos os funcionários do MEC fossem demitidos e o próprio ministério fosse fechado. Topam? Podem começar pelo senhor Ministro.

A verdade é que crianças, jovens e milhões de adultos não sabem ler ou escrever. Têm dificuldades para interpretar texto simples, acompanhar discussões básicas. Carlos Bolsonaro é um bom exemplo. Descuidar de humanidades, seja lá como esse descuido for institucionalmente representado, não melhorará em nada.

Por fim, há muitas pautas urgentes, um só mandato não dá conta de metade delas, então first things first. Melhoremos o que existe, imitemos o que dá certo, cortemos o que não presta. E, afinal de contas, se a política, com p maiúsculo, é algo mais do que pragmatismo e tecnocracia, e tem muito de simbólico e valorativo, que mensagem esse governo pretende transmitir ao desidratar o ensino de humanidades? Pois é exatamente essa mensagem. Ministério de peixe, peixinho é.

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