Brasil ainda tem milhões de crianças, jovens e adultos na extrema pobreza| Foto:

O ministro Paulo Guedes foi entrevistado pela Folha de S. Paulo (pode, presidente?) e explicou muitas das ações do governo (ou de sua competência específica) para os próximos meses. Pela primeira vez, desde as eleições, parece haver uma ideia mais clara de como funcionam as engrenagens da política e do que ele pretende e pode fazer com as engrenagens da economia. Guedes falou mais como homem público e menos como gênio de palestra. A conferir os próximos capítulos desse enredo que é feito somente de reviravoltas.

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Mas nem tudo são flores no jardim dos liberais. Lá pelas tantas, uma de suas respostas acendeu o fogo da paixão em seus detratores. Sem rodeios, disparou: “Os ricos capitalizam seus recursos. Os pobres consomem tudo”. É verdade? É verdade. Só que o contexto importa. De que pobres ele fala – de todos? Dos que ganham menos do que o necessário para sobreviver, ou dos que ganham pouco mais do que isso, e ainda não poupam? Mesmo para estes últimos, que não são miseráveis, será mesmo que a poupança lhes está ao alcance?

Liberal tem de aprender a se comunicar direito e, sobretudo, ter uma percepção mais realista da sociedade. Conceitualmente, não há dúvida de que a poupança é condição necessária para o enriquecimento (de indivíduos e países), mas também é certo que a pobreza limita a própria capacidade de poupar. Quem quer que tenha sido pobre, ou conheça de perto a pobreza, sabe que o cidadão pobre gasta tudo o que ganha porque esse tudo é pouco demais, e não lhe restam muitas alternativas. Uma família com alguns filhos e baixa renda per capita terá se se virar com a comida, as roupas, o transporte, o aluguel, a luz, a água, os remédios.

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Poupar é hábito importante, sim, que deve ser estimulado desde a infância. Mas nem tudo é tão simples quanto parece. De certa forma, tocamos aqui na questão mais geral do mérito, virtude cantada em verso e prosa por defensores do livre-mercado e do empreendedorismo, que muitas vezes se converte na superstição da “meritocracia”. Pois eu acredito no mérito, não acredito na meritocracia – se compreendida como palavra-de-ordem ou abracadabra de todos os problemas econômicos e sociais. O rapaz de classe-média é diferente do herdeiro rico que é diferente do filho do desembargador que é diferente do comerciante  que é diferente do menino do interior do Maranhão que é diferente do analfabeto que é diferente do ex-presidiário que é diferente da mulher abandonada pelo marido que é diferente de mim e de você.

Mérito, esforço, resiliência, disciplina e força de vontade são valores fundamentais à vida de qualquer um, em qualquer condição, a partir de qualquer “posição original”, nos termos do filósofo John Rawls. Não discuto uma obviedade dessas. Discuto o seguinte: é preciso ser muito obtuso, ou muito fanático, para ignorar ou negar que as diversas posições originais – onde nasci, quem são meus pais, qual é seu nível de escolaridade, quantos são meus irmãos, quanto dinheiro herdei ou não herdei, quais doenças incapacitantes ou debilitantes tenho etc – podem distribuir mal as oportunidades, e que os contrastes socioeconômicos já estabelecidos no dia do nascimento impõem vantagens a uns e desvantagens a outros, que devem ser contrabalançadas por ações – públicas ou privadas, este é outro problema – que suavizem essas discrepâncias. Mérito e oportunidade não são antinomias.