por Igor Sabino
O que seria uma política externa brasileira “conservadora”? Essa é uma pergunta que tenho me feito já há certo tempo. Pelo menos, desde quando comecei minha graduação em Relações Internacionais, em 2012. Como a maioria dos jovens cristãos universitários, eu já tinha sido alertado diversas vezes sobre os perigos do chamado “marxismo cultural”, e sobre a importância de ter uma cosmovisão cristã. O grande desafio, no entanto, era pensar sobre política internacional a partir desses moldes. Na minha igreja e no ambiente evangélico em geral, eram recorrentes palestras sobre o viés anticristão de muitas teorias comuns às ciências humanas, como o marxismo, a teoria crítica e o pós-estruturalismo.
Tudo aquilo fazia muito sentido para mim. No entanto, eu não conseguia encontrar muita coisa sobre as teorias de Relações Internacionais que estava estudando, ou até mesmo sobre política externa. Foi mais ou menos nessa época em que fui apresentado a Olavo de Carvalho, por meio de seu livro O mínimo que você precisa saber para não ser um idiota (Record, 2013). A princípio, gostei muito do que li. Afinal, sempre fui contra o aborto, sionista e preocupado com a perseguição aos cristãos ao redor do mundo. Cheguei, inclusive, a considerar seriamente a ideia do chamado “globalismo” como sendo verdade. A existência de uma elite global que tenta manipular o mundo por meio da ONU e de outras instituições internacionais era algo bastante apelativo para um adolescente de 17 anos. No entanto, não cheguei a me aprofundar muito na “obra” de Olavo, já que, em um dos primeiros artigos que li, o “filósofo” encorajava os jovens direitistas a escolherem um tema específico e a se aprofundar nele a fim de não apenas convencer os oponentes, mas “humilhá-los”. Aquela era a ideia da criação de uma nova “elite cultural”.
Segui o conselho de Olavo. Porém, tomei um rumo diferente daqueles que os seguidores dele geralmente tomam. Decidi focar meus estudos em política internacional e, mais especificamente, no Oriente Médio. Mas, em vez de assistir a inúmeras aulas do COF, o curso de filosofia de Olavo, optei por seguir o caminho tradicional da academia. Busquei ler de forma crítica todos os textos obrigatórios da grade curricular e passei a debatê-los, sempre tentando avaliá-los à luz dos ensinamentos cristãos tradicionais que recebi na Igreja e na minha leitura diária das Escrituras. Isso me levou, por exemplo, a rejeitar quase que de forma veemente algumas teorias como o pós-colonialismo, bem como a me envolver em uma série de debates com colegas e professores sobre o conflito Israel-Palestina, me deixando ainda mais sionista. Ao mesmo, porém, comecei a notar uma série de equívocos a respeito do chamado globalismo, e nas principais ideias de Olavo de Carvalho sobre política internacional.
Primeiro, as distinções que ele faz entre globalismo e globalização econômica não existem na literatura sobre globalização que estudei. Para quase todos os autores lidos, os termos são sinônimos. Além disso, a ideia de que a ONU é uma organização com poderes quase supraestatais soa com piada diante das discussões entre realistas e liberais no campo das Relações Internacionais. Sem mencionar as falhas em vários regimes internacionais, como no de refugiados. Coisa que infelizmente já pude ver na prática, seja nos campos na fronteira da Jordânia com a Síria, seja nas favelas do Cairo e de Beirute.
Ao final da graduação, uma das minhas maiores inquietações era a seguinte: como eu poderia pensar a política internacional e, mais especificamente, a política externa brasileira, a partir de um viés conservador? Diante dos fatos e evidências empíricas com os quais eu estava me deparando, estava claro de que isso certamente não seria possível por meio de Olavo de Carvalho. Foi quando, no mestrado, decidi estudar a política externa dos EUA, afinal, o país sempre teve uma forte influência cristã desde a sua formação. Ademais, foi governado por muitos presidentes conservadores, e sempre incorporou, de modo geral, em sua política externa, questões importantes para mim, como a defesa da liberdade religiosa e o apoio a Israel.
Logo de início, descobri que uma das maneiras de analisar a inserção internacional dos EUA é por meio da categorização das chamadas “grandes estratégias” que, em geral, defendem uma maior atuação americana na política internacional ou um maior isolacionismo. O que achei interessante é o fato de que, dessa maneira, ficava claro quais ideias geralmente eram mais defendidas pelos republicanos e quais eram mais comuns entre democratas. Ajudando-me, portanto, a formular minha própria noção de “política externa conservadora”. Nesse sentido, algo que me chamou a atenção foi o chamado “jacksionanismo”, um termo cunhado pelo historiador Walter C. Mead, para dividir as principais tendências da política externa americana com base nos presidentes que as primeiro defenderam (hamiltonianismo, wilsonianismo, jacksionanismo e jeffersonianismo).
De acordo com Michael Doran, ex-consultor da Casa Branca para assuntos do Oriente Médio, em seu artigo “The Theology of Foreign Policy”, publicado em 2018, na revista First Things, o “jacksionianismo” pode ser utilizado como eufemismo para designar fundamentalistas cristãos, em contraponto aos cristãos “modernistas” do início do século XX. O argumento do artigo é que o embate entre esses dois grupos é o que expressa a verdadeira divisão quanto aos rumos da política externa americana.
Em resumo, o primeiro grupo, baseado em leitura mais literal da Bíblia, tende a crer com maior ênfase na revelação de Deus e Seu poder em guiar a história, que rumaria não ao progresso, mas a um período de grande tribulação, culminando com o retorno de Jesus para reinar sobre a terra durante mil anos, a partir de Jerusalém. Logo, caberia aos EUA, dentre outras coisas, lutar pela manutenção da democracia e defender o povo judeu, sem grandes ambições internacionais.
O segundo grupo, por sua vez, tem uma “escatologia” (visão do fim dos tempos) diferente, baseada em uma leitura mais alegórica da Bíblia. Acredita na força do progresso humano e que Jesus retornará para um mundo perfeito. Assim, seria o papel dos EUA se empenhar na promoção do bem comum internacional, lutando pela unidade de todos os povos. Se o primeiro deposita a sua esperança na revelação, o segundo a deposita na razão.
Hoje, muitos dos que se identificam com o primeiro grupo apoiam Donald Trump, inclusive cristãos. A política externa do republicano, inclusive, demonstra claramente várias crenças comuns aos “jacksonianos”. Percebo que, consequentemente, no Brasil, é uma versão caricaturada dessa tradição que tem guiado a nossa política externa. No entanto, sem traduzi-la para o nosso contexto, confundindo interesse nacional americano como bem comum brasileiro. Noto isso com tristeza, pois acredito que finalmente tenho começado a compreender o que seria uma “política externa brasileira conservadora” – e ela é bem diferente do que temos vivido.
Confesso que, enquanto cristão, tendo a me alinhar também ao primeiro grupo. Porém, prefiro os termos e as categorias utilizadas por Robert Nicholson em resposta a Doran: “hebraísmo” e “helenismo”. O hebraísmo, segundo Nicholson, teria Reinhold Niebuhr como um de seus expoentes teóricos no campo da política internacional. No entanto, nada mais seria do que a crença de que a tradição cristã tem algo a dizer sobre como os americanos – e, eu diria, os brasileiros – devem se engajar com o mundo ao seu redor. Nas palavras de Nicholson, “embora dificilmente seja um manual para estadistas, a Bíblia oferece motivos e princípios narrativos que ajudam a orientar qualquer envolvimento responsável com a história. Além disso, a fé bíblica confere à história um significado e uma confiança que não podem ser encontrados fora do texto revelado.”
Partindo dessa visão hebraísta, eu diria que um dos principais elementos de uma “política externa brasileira conservadora” seria não o alinhamento automático aos EUA, mas, sobretudo, uma reflexão inicial sobre o seu papel e lugar no mundo. Isso significa, dentre outras coisas, o reconhecimento de que somos o maior país da América do Sul e temos um grande potencial de influência na região. Logo, deveríamos considerar com mais responsabilidade as implicações de nossa localização geográfica, bem como do significado de nossas fronteiras físicas, não negligenciando a importância da cooperação com nossos vizinhos.
Podemos entender a importância dos EUA para o equilíbrio da balança de poder mundial – em especial diante de governos autoritários e expansionistas, como China, Rússia e Turquia – e até por isso admirá-los, cooperando com eles sempre que possível. Mas, do mesmo modo que os hebraístas americanos parecem compreender o lugar e a missão deles no mundo, precisamos descobrir o nosso. O caminho, porém, é o mesmo: os escritos dos patriarcas e profetas, a tradição hebraica.
Os fundamentos dos EUA e, consequentemente, de sua política externa, estão na Bíblia hebraica. Logo, defender uma política externa brasileira conservadora, diferentemente do que Olavo de Carvalho e Ernesto Araújo apregoam, não significa imitar os EUA em tudo. Mas, sim, ir às mesmas fontes deles, a fim de encontrarmos, nós mesmos, os próprios ideais que nortearão a nossa ação no mundo, à luz do nosso próprio contexto. Precisamos lembrar que o conservadorismo é um conjunto de princípios, não de regras.
Igor Sabino é Bacharel e Mestre em Relações Internacionais pela Universidade Estadual da Paraíba (UEPB), e alumnus do Philos Project Leadership Institute. Realizou trabalhos humanitários em ONGs de Direitos Humanos ligadas à American University of Cairo, no Egito, e pesquisas de campo na Polônia, Israel, Territórios Palestinos, Líbano e Jordânia relacionadas a migrações forçadas e perseguição religiosa.