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Por que o “Ele não” pode acabar se transformando num “Ora, por que não?”

Protesto contra Bolsonaro em Brasília. Foto de SERGIO LIMA/AFP (Foto: )

Os termos direita e esquerda não são conceitos científicos, mas arranjos precários, historicamente relativos, para determinar as coordenadas ideológicas possíveis num dado momento. Ainda servem para fins argumentativos e para identificar constâncias e afinidades, mas são cada vez menos suficientes se o objetivo é explicar o fenômeno político contemporâneo.

Nem toda esquerda é comunista, embora todo comunista seja de esquerda. É possível aceitar a ideia de uma esquerda não comunista e, portanto, não radical. Uma esquerda democrática. Temos esquerda assim na Europa e nos EUA.

Barack Obama, ainda que mereça muitas críticas, conduziu o país de forma democrática. O fato de ter dado lugar a Donald Trump mostra que as instituições americanas, mesmo depois de governos de esquerda, funcionam bastante bem. Não funcionassem, Trump não seria eleito (ou, sendo eleito, não tomaria posse).

O pior da direita (isto é, a versão menos civilizada da direita) aparece quando a esquerda, predominante no establishment, não aceita a existência de nenhuma direita. (A recíproca é verdadeira.) Sufocar o debate ideológico tende a servir de empuxo para o contra-ataque de um adversário que também não admitirá debate quando chegar a sua vez na vitória eleitoral ou na tomada de poder.

Do que se lê em boa parte da imprensa, parece não haver direita, ponto, sem adjetivo. Tudo o que não é esquerda é sempre extrema-direita, como se qualquer ideia que não fosse de esquerda fosse, ipso facto, extremamente ruim.

O resultado dessa interdição às ideias políticas que não sejam de esquerda, da esquerda-Projac, da esquerda-manifesto, é a incapacidade de compreender que, para além das ideias, aspirações e sentimentos de uma elite grã-fina e bronzeada, há outras ideias, aspirações e sentimentos que não podem ser sufocados.

Há ideias, aspirações e sentimentos que não se encontram nas calçadas ideológicas por onde costumam passear Chico Buarque, Letícia Sabatella ou Jojo Todynho. Há todo um país para além da Vila Madalena e do Leblon, mas eles não sabem. Há toda uma revolta que não se reduz ao beicinho da Bruna Linzmeyer, e padrões morais que vão além daqueles que despencam em cada entrevista da Deborah Secco.

Por isso, se existe ou vier a existir um presidente que realmente leve o pior do ideário da direita ao extremo, em parte a culpa recairá sobre todos aqueles que desprezam ou desprezaram a troca de ideias com quem, sendo de direita, nunca foi às vias de fato com a democracia.

Noutras palavras: para quem durante anos tachou os recalcitrantes candidatos de centro-esquerda do PSDB como sendo de direita, a maldição vinda dos céus é ter agora de lidar com Jair Bolsonaro, que está de fato muito mais à direita do que a soma de todos os candidatos do PSDB e do MDB juntos.

Junte-se a isso a incapacidade para a autocrítica e a dificuldade de entender que a corrupção sistêmica é tão nociva à democracia quanto as bravatas de um candidato. Rosnados preconceituosos não são democráticos, concordo, mas fazer do Estado um puxadinho do partido é o que, mesmo?

A insensibilidade moral diante dos escândalos nos últimos anos salta aos olhos. Quando dezenas, centenas de artistas fazem cara de indignação barata e apontam dedos para o eleitor de Bolsonaro, este, que já nem mais diferencia um participante do Big Brother Brasil de um integrante d’A Fazenda, aponta os dedos de volta. Com alguma razão.

O silêncio obsequioso das “personalidades” assinantes de manifesto diante dos crimes cometidos pelo Capo petista termina por ser eloquente demais até para o observador distraído. Não há revelação de Antônio Palocci que sirva para um levantar de sobrancelha. Não há declaração de José Dirceu que provoque frio na espinha. A corrupção do PT a gente não acusa. É cosa nostra, briga de família.

Na cabeça de vento dos “sub intelectuais de miolo-mole” (expressão de José Guilherme Merquior, que tanta falta nos faz), a esquerda é sempre arrumadinha, instalada no céu de um ideal, no coração de alguma coisa muito boa, pura, incorruptível.

O cinismo é tão sólido que espanta. Venezuela não é um regime de extrema-esquerda e, se deu errado, nem de esquerda é. Cuba idem. Assim como todas as experiências comunistas, que continuam a receber apoio de gentinha como Gleisi Hoffmann e Manuela d’Ávila. O PT saqueou o Estado? Pois a extrema bandalheira no governo é só o efeito colateral de suas alianças com a direita.

Quando se trata da esquerda, não há extremismo nem excessos. Quando se trata da esquerda, todo ditador é presidente, todo tirano é líder, toda república é democrática, todo bandido é pai, toda corrupção é acidente.

E isso tudo, por óbvio, é extrema canalhice.

Agora, com o bicho-papão do PSL chegando nos calcanhares de quem sempre teve medo de José Serra, Geraldo Alckmin ou Fernando Henrique Cardoso, talvez as personalidades, os artistas, os intelectuais venham a descobrir que há pessoas e grupos com as quais negociar, dialogar e conviver, para além de seus exclusivíssimos metros quadrados de pusilanimidade e insensatez.

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