Carlos Góes é doutorando em Economia (Universidade da Califórnia) e mestre em Economia Internacional (Universidade Johns Hopkins); especialista em finanças e métodos quantitativos; bacharel em Relações Internacionais (Universidade de Brasília). Escritor e Pesquisador-Chefe do Instituto Mercado Popular.
1 O que dizer àqueles que acreditam na tese: “Se não houvesse corrupção, não precisaríamos da reforma”?
O passo inicial é compreender que essa não será a última reforma da previdência pela qual passaremos. A reforma da previdência é um imperativo demográfico: em 1980 havia no Brasil 13 pessoas em idade ativa para cada idoso; em 2018 esse número chega a 7,7 ativos para cada idoso; em 2060 espera-se que essa relação alcance 2,22 ativos para cada idoso. Dada essa realidade, no nosso sistema de repartição, à medida que a população envelhece, aumenta o hiato entre o número de pessoas que estão contribuindo para a Previdência e aqueles que receberão aposentadorias. Quanto maior é esse hiato, menos recursos públicos sobram para financiar gastos considerados essenciais pela maioria da população (como saúde e assistência social, por exemplo). Sem reforma, o governo perde cada vez mais a capacidade de prover serviços públicos e fazer investimentos. O problema da Previdência é estrutural, não conjuntural. Apontar a existência de corrupção não resolve o problema, uma vez que, mesmo se fosse possível acabar com a corrupção do dia para a noite, ainda haveria uma decisão a ser feita entre gastar esse excedente para financiar aposentadorias ou para fazer outros investimentos públicos.
2 Os terraplanistas da economia, contrários a esta (e a qualquer) reforma, afirmam que ela prejudicará os mais pobres.
O que eles não sabem é que, em termos líquidos, nossa Previdência Social transfere renda de pobres para ricos. Os pesquisadores do IPEA, Marcelo Medeiros e Pedro Souza, estimaram que 17% da desigualdade brasileira se explica pelas transferências da Previdência Social. É verdade que a Previdência tem um papel importante em proteger os mais vulneráveis, como os trabalhadores do mercado informal e rurais, muito mais pobres do que a média da população, que conseguem se aposentar mesmo tendo contribuído pouco para o sistema ao longo da vida. A preocupação de proteger e de continuar a proteger essas pessoas é válida – e eu também compartilho dela.
Um princípio fundamental da reforma é fazer com que ela seja progressiva, ou seja, quem ganha mais na ativa e recebe aposentadorias maiores deve contribuir proporcionalmente mais para o sistema. Isso se alinha ao nosso sistema de repartição, em que a Previdência Social é não somente um mecanismo de poupança para aposentadoria, mas também uma espécie de seguro social, em que a sociedade protege os mais vulneráveis com um nível mínimo de renda garantido via subsídios pagos por quem ganha mais.
Nesse sentido, há pontos muito importantes na atual proposta de reforma, como a fixação de uma idade mínima para aposentadoria (garantindo que o juiz não se aposente antes do pedreiro, como acontece hoje) e a introdução de alíquotas progressivas para a contribuição previdenciária. Quem ganha o teto do funcionalismo público (R$39.700), por exemplo, vai passar a pagar cerca de R$2.300 a mais por mês com as novas alíquotas; já servidores que ganham menos de R$4.000 vão pagar menos. Anteriormente, todos pagavam a mesma alíquota (11%).
Nesse momento, seria essencial que a oposição se concentrasse em quais pontos devem ser mudados para não prejudicar os mais vulneráveis. Alguns deles incluem, por exemplo, o aumento da remuneração do BPC fásico e uma regra de transição mais longa para a aposentadoria rural por idade.
3 Se a reforma da Previdência não for aprovada em termos mais ou menos próximos da proposta original, quais serão as consequências a longo prazo?
Provavelmente o governo já inclui alguma previsão de diluição das economias previstas pela reforma da Previdência. A proposta de reforma sob Meirelles previa uma economia de cerca de R$600 bilhões em 10 anos, enquanto a proposta original de Guedes é de cerca de R$1 trilhão. O mais importante é ter uma reforma que proporcione uma economia substantiva (entre R$600-800 bilhões) para garantir uma trajetória de estabilização da dívida pública no médio prazo, respeitando o teto de gastos do governo federal. Se a proposta for muito menor do que isso, a perspectiva seria de deterioração da percepção da situação fiscal do governo brasileiro, com a curva de juros futuros mais alta. Com isso, o BC poderia ser forçado a aumentar a taxa de juros e reduzir ainda mais o ritmo já decepcionante da economia brasileira.
4 A Previdência é um dos grandes problemas, mas seguramente não é o único. Na sua avaliação, quais outros setores o governo deveria atacar, em seguida?
O problema fiscal é condição necessária, mas não suficiente, para o futuro do Brasil. A reforma da Previdência é essencial para resolver o problema fiscal brasileiro. Ou seja, a reforma da Previdência é um passo essencial para que outras reformas possam ajudar a resolver nosso problema de produtividade. Há uma agenda de reformas – tributária, comercial e de marcos regulatórios, dentre outras – em vários setores que serão necessárias para alavancar nossa produtividade. Mesmo durante o nosso ciclo de crescimento (2002-2011), a produtividade do trabalho no Brasil cresceu menos do que na maioria dos países em desenvolvimento. Entre 2000-2015 ela cresceu menos do que em 75% dos países em desenvolvimento.
A reforma dos marcos regulatórios (que já começou no governo passado) pode ajudar a melhorar nosso problema de infraestrutura. A qualidade da nossa infraestrutura é percebida como muito pior do que outros países comparáveis. Desde a privatização das empresas de telecomunicações, só as grandes hidroelétricas (como Belo Monte) foram grandes investimentos privados em infraestrutura. Há um bom tempo nosso investimento privado em infraestrutura é mais baixo do que maioria dos países em desenvolvimento. Nosso hiato regulatório nessa área vem particularmente na parte de transportes.
Reduzir a complexidade tributária e creditícia também será um grande desafio. Empresas brasileiras gastam mais de 2 mil horas-trabalhadas por ano para fazer a contabilidade e pagar os impostos no Brasil (em 50% dos países da América Latina esse número é menor que 238 horas por ano). Uma proposta de reforma tributária deveria incluir a unificação em blocos de impostos corporativos sobre a renda (IRPJ e CSLL) e sobre consumo ou folha de pagamentos (ICMS, IPI, ISS, Cofins, Pis/Pasep e Salário Educação), estes possivelmente por meio de um imposto sobre o valor agregado (IVA) uniforme. Deve também incluir a simplificação de deduções do IRPF e aumento da progressividade do IRPF, simultaneamente a uma desoneração transversal de pessoas jurídicas. Por fim, deveria ainda decretar o fim de todos os regimes especiais de tributação que criam distorções setoriais. Bernardo Appy tem trabalhado em um bom projeto de reforma tributária.
Por último, é importante avançar na agenda de abertura comercial. O Brasil está entre os 5 países com menor razão fluxo de comércio/PIB do mundo, segundo dados do Banco Mundial. Continuamos muito fechados, mesmo em comparação a outros países de renda ou população similares. Nossas tarifas (impostos sobre importações) sobre manufatura são muito maiores que a média mundial, e a partir de 2008, ao contrário da tendência internacional, elas subiram. Por que tudo isso importa? Porque existe ampla evidência científica que momentos de abertura comercial são seguidos de aumento de produtividade e crescimento da renda nacional. Existem esforços desde o governo passado de abrir o mercado brasileiro a bens de capital e bens de tecnologia, e avançar dentro do Mercosul uma agenda de maior liberalização comercial. Contudo, as resistências por parte dos lobbies industriais têm sido enormes.