Sabe churrascão improvisado? Um ficou de levar a carne; o outro, a linguiça; este, a cerveja, aquele, o gelo; carvão tem-meio-saco-acho-que-dá, mulherada gosta de frango e vão trazer. Sal grosso? Sal grosso sempre tem, procura no armário, lá no fundo. Daí o pessoal vai chegando, aos poucos, e quem traria a carne, trouxe pouca carne; quem ficou de trazer linguiça, trouxe linguiça demais; a cerveja veio quente, o gelo não veio; alguém me vá ao posto ver se arruma algum gelo; o carvão tá ruim, compra carvão; e acendedor; sal grosso tem, sempre tem, estava no armário mesmo; o frango, esqueceram no congelador. Mas vamos começar o churrasco assim mesmo, faz pão-de-alho, coloca o pagode e a gente se vira.
Qualquer semelhança com a equipe de transição do governo de Bolsonaro não é coincidência. Nunca vi negócio mais bagunçado e sem rumo. Bolsonaro era favorito, venceu, está em lua-de-mel com o eleitorado e, mesmo assim, um tropeça no outro que tropeça no um. O presidente já desautorizou o economista, que desautorizou o chefe da Casa Civil, que falou diferente do vice-presidente, que foi criticado pelo presidente, que desconfia da reforma da Previdência proposta pelo economista. Os primeiros-filhos desautorizam todo mundo e já teve gente demitida por um deles. Como se desgraça pouca fosse bobagem, General Mourão ingressou no Twitter.
Se alguém temia uma guinada autoritária ou mesmo ditatorial de Jair Bolsonaro, pode começar a trocar de medo. Isso está me parecendo menos 1964 e mais 1989, com sotaque de 2014. Muita gente falando mais do que deve, menos do que sabe, sem medir consequências e se esquecendo de que a campanha acabou, o governo nem começou e os parceiros comerciais e diplomáticos precisam receber sinais mais nítidos e estáveis do que há de ser esse futuro governo. Que raio de coisa foi essa de provocar palestinos, quando não temos problema nenhum com a Palestina? A diplomacia brasileira se notabilizou por ser de alto nível e de estratégica neutralidade. Considerando que, ao contrário dos EUA, não temos interesses militares ou geopolíticos em conflitos desse tamanho, “não temos perna pra isso”, como dizem, então devemos falar menos e ouvir mais. Sob esse ponto de vista, a escolha do esquisitão Ernesto Araújo, leitor de René Guénon e Julius Evola, é bastante arriscada. Que ele aposte no pragmatismo, mais do que no recrudescimento do discurso conspiratório.
Feitas as contas, consigo ver alguma coisa boa nesse imbróglio? Consigo. A equipe econômica me parece mais coesa, com Joaquim Levy e Mansueto Almeida, no BNDES, e Roberto Campos Neto, no BC. Paulo Guedes terá com quem praticar o idioma do liberalismo econômico. (E aqui, a propósito, mora o perigo: é possível que o super-economista não compreenda – e não aceite – muito bem o pendor iliberal do super-chanceler.) De alentador, menciono também a sensata entrevista coletiva que Sérgio Moro concedeu. Mostrou a firmeza de costume e deu a entender que preza por uma visão mais sistêmica e menos persecutória do problema da corrupção e do crime em geral. Bom para esfriar ânimos sempre exaltados do núcleo pega-esfola-mata do governo.
O papel de um presidente em momento de transição é declarar coisas vagas ou obviamente positivas. Não tem de marcar ponto na ideologia de campanha e, principalmente, tem de verificar – antes de declarar – quem são nossos maiores parceiros comerciais. Alguns deles não são os parceiros ideológicos, e é para isso que serve o livre-comércio: comprar e vender de, e para, qualquer um. Quem paga, leva – amigos à parte. O resto é risco. Um governo se faz com boas expectativas, e sabemos que esperar pelo melhor vale tanto quanto o que de fato acontece de melhor. Não ajuda em nada que a cada dois dias Bolsonaro tenha de vir a público dizer que sim, defenderá a democracia, sim, respeitará a Constituição. Que ele precise nos lembrar – e se lembrar – disso é um pouquinho preocupante. Temos urgências tantas e tamanhas que certas pautas não deveriam sequer existir: respeito à lei, à Constituição, à democracia. Relação minimamente respeitosa com a imprensa, não apenas com a imprensa chapa-branca. Vamos dar por pressuposto de que isso será respeitado com rigor e ensaiar melhor o discurso sobre os juros, as estatais, a dívida pública, os subsídios, a Previdência.
Eleitores e integrantes da equipe garantem que essa aparente falta de rumo é mérito, não demérito; é virtude, não vício. Tudo quer dizer, afinal de contas, que Bolsonaro é homem do povo, não ensaia falas, não atua em frente às câmeras, é gente-como-a-gente, bebe vinho no copo de requeijão. Que bonito. Depois de anos esculhambando a ignorância admitida de Lula e a maluquice não admitida de Dilma, teremos de louvar no presidente as características que criticamos nos ex-presidentes. De minha parte, aposto que toda essa algazarra política é o preço que se paga por um governante que promete um liberalismo que nunca professou e um conservadorismo que é mais preconceito que valor. Numa fala curiosa, Paulo Guedes disse, de Onyx Lorenzoni, que “políticos não entendem de economia”. Minha mulher comentou: “O problema é quando políticos não entendem de política”. Torçamos para que o pior não seja tão ruim como parece. Se organizar direitinho, dá para governar. O brasileiro é o último que morre.