Jesus Cristo e Franz Kafka. Sempre notei semelhança no nome de ambos. Há, porém, outras similitudes. Tal qual o Nazareno, o autor de A metamorfose teve problemas com seu pai (“por que me abandonaste?”, perguntou Cristo crucificado no Evangelho, “poderia supor que tu simplesmente me esmagarias sob os pés, a ponto de não sobrar nada de mim”, escreveu o angustiado Kafka na Carta ao Pai). Ambos não casaram, nem tiveram filhos e só alcançaram reconhecimento depois que morreram. Pode-se dizer que essa valorização só foi possível porque um amigo os traiu: Judas, com o beijo delator em troca de trinta de moedas de prata, e Max Brod, que não queimou os escritos inéditos como havia pedido o escritor checo.
Eis uma diferença. JC não deixou nada escrito. Já FK escreveu, e muito. Graças ao apóstolo Max Brod, boa parte dessa obra está à nossa disposição.
Graças também aos bons tradutores, podemos ler Kafka no Brasil. Um deles é Marcelo Backes, que trouxe ao altar das livrarias, juntamente com a editora Civilização Brasileira, o volume Blumfeld, um solteirão de mais idade e outras histórias, que reúne parte considerável da produção contística de Franz Kafka. Além de traduzir, escreve um brilhante (apesar de ser ofuscado um pouco quando acrescenta um “golpista” forçado ao abordar o conto “O timoneiro”) e elucidativo posfácio, em que dois capítulos se intitulam, não por acaso, “a.K. – antes de Kafka” e “d.K. – depois de Kafka”.
O conto que intitula a coletânea é o que mais condensa tudo que Kafka fez. Um solteirão decide se terá ou não um cachorro como companhia. Enquanto isso, percebe duas bolas quicando às suas costas. Para onde vai, elas vão atrás. Algo incômodo e estranho, sem dúvida, mas que não espanta muito o nosso protagonista. Quando consegue prendê-las num baú, dá a chave para o filho da empregada, dizendo que lhe dará as bolas de presente. Enquanto isso, vai trabalhar e aqui aparece todo a crítica ao trabalho burocrático que é peculiar do autor. Nota-se também a presença de dois ajudantes de Blumfeld, daqueles que mais atrapalham do que ajudam, como os auxiliares do agrimensor K., em O castelo, ou mesmo os dois responsáveis por prender Joseph K. em O processo. Não seriam as duas bolas as representações dessas figuras que por sua vez representam o trabalho inútil da burocracia?
O bestiário de Kafka é bem representado na coletânea. Do narrador canino e seus “cãopanheiros” (escolha duvidosa do tradutor) em “Investigações de um cão”, passando pelo Dr. Bucéfalo, que era o cavalo de Alexandre, o Grande e agora é “O novo advogado”, até chegar aos ratos de “Josefine, a cantora ou O povo dos camundongos”, em que, nas palavras de Günther Anders (e na tradução de Modesto Carone, que é também o maior tradutor de Kafka no país), “é descrita a prima-dona dos camundongos, religiosamente venerada e dona de um canto lamentável, que infunde respeito e devoção absolutos”. Harold Bloom, em Abaixo as verdades sagradas, no entanto, afirma que Josefine também é um corvo ou gralha, que é o que significa kafka em checo, assim como Graco, do conto “Graco, o caçador”, é gralha em latim.
Além das bolinhas de Blumfeld, outro objeto causa estranhamento. Trata-se de “um carretel de linha chato em forma de estrela”, que recebe o nome de Odradek no conto “A preocupação do pai de família”. Num ensaio sobre o relato, Roberto Schwarz escreve: “A graça de Odradek é desumana, e a vida humana é desgraçada.”
Os mitos, por seu turno, são revisitados em “Prometeu”, “O silêncio das sereias” e “Posídon”, contos curtos e enigmáticos. “O abutre” pode ser também uma releitura do mito de Prometeu. É um conto curto, porém doloroso, que ecoa na mente do leitor por muito tempo. Para Marcelo Backes, é uma história “terrível para despedaçar o que ainda resta aparentemente intacto em nós”.
Infelizmente, não estão no livro alguns dos meus contos preferidos de Kafka, como “A ponte”, “A construção” e “Na colônia penal”, enquanto há contos que não me agradam muito, principalmente os retirados do livro Contemplação, mas que não deixem de ser um intervalo de leveza entre o peso das demais histórias. Por outro lado, o onírico “Um médico rural” e o angustiante “Um artista da fome”, narrativas consagradas, merecem lugar na coletânea.
“Diante de Kafka, estou prostrado”, escreveu Elias Canetti. Prostramo-nos todos diante de sua obra, afinal, como lembra Marcelo Backes no posfácio, “num dos fragmentos de seus Diários está escrito: ‘Escrever como forma de oração’, e ele fez de sua arte sua reza”. Oremos, então.
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Cassionei Niches Petry é Mestre em Letras-Leitura e Cognição, professor de Literatura e Línguas Portuguesa e Espanhola no Ensino Médio. Autor dos livros de contos “Arranhões e outras feridas” (Multifoco) e “Cacos e outros pedaços” (Penalux), do romance “Os óculos de Paula”, (Livros Ilimitados) e do livro de crônicas e ensaios “Vamos falar sobre suicídio?” (Kindle/Amazon). Atualmente, é colunista do site Digestivo Cultural, Portal Entretextos e colabora com o Caderno de Sábado do jornal Correio do Povo, de Porto Alegre – RS.
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