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1 Sem rodeios: vivemos, de fato, um período de enfraquecimento do espírito, dos valores e das instituições democráticas – Brasil e mundo?
O diagnóstico sobre o declínio global da democracia, ou da recessão democrática, emergiu com mais força na ciência política há quase uma década, numa série de publicações internacionais. Nem me refiro aos estudos que já vinham apontando como reformas sob a alcunha do neoliberalismo vinham corroendo as condições sociais para a democracia, nem aos que mostravam o quanto o Estado nacional vem sendo forçado a abrir mão de sua soberania para circuitos transnacionais de poder. Eu me refiro a indicadores democráticos mais elementares e prosaicos mesmo: processo eleitoral livre, liberdades civis básicas, independência judicial, percepção social do valor da democracia etc.
E os relatórios entre 2019 e 2020, dos principais centros de avaliação da democracia no mundo (como o V-Dem, Freedom House ou World Justice Project) vêm apontando que vivemos uma nova onda de autocratização. Pela primeira vez no século, passamos a ter mais regimes autocráticos do que democráticos. Claro que se pode e se deve saber como essas avaliações são produzidas, testar sua consistência metodológica e assim por diante. Mas não se pode descartá-las sem lê-las.
Quanto ao Brasil, a essa altura parece que não resta mais muita dúvida. Nossos índices democráticos começaram a despencar antes da eleição de Jair Bolsonaro, mas Bolsonaro trouxe uma aceleração desse processo ladeira abaixo. Infelizmente, uma franja dos observadores da política brasileira (entre cientistas políticos, jornalistas e políticos profissionais), embarcaram na cantiga da “democracia risco-zero”, “as instituições moderam” etc. Esse negacionismo político, ainda que não majoritário, legitimou a complacência aos abusos diários do governo Bolsonaro. Não entenderam qual era a natureza da pergunta sobre a “democracia em risco”, nem foram fiéis aos parâmetros que a teoria política e a ciência oferecem para avaliar. Abusaram da retórica, traíram a ciência e estimularam a complacência.
2 O que dizer àqueles que defendem a seguinte tese: “Bolsonaro não ameaça a democracia, porque não fez nada efetivamente até agora nesse sentido. Não proibiu a imprensa, os partidos políticos, a liberdade de expressão” etc?
Em primeiro lugar, essa é uma miopia desorientada conceitualmente. Não é surpresa que costuma sair da boca do próprio Bolsonaro, para quem 'povo' corresponde ao grupo que o apoia (que hoje não corresponde nem aos 40% do eleitorado que o elegeu) e 'democracia' o regime em que minorias obedecem à maioria (que ele nunca teve).
Vamos falar de imprensa? De fato, ainda não tentou proibir, pois nem conseguiria. Mas já tomou diversas iniciativas para inviabilizar o financiamento da mídia profissional e ataca verbalmente jornalistas com uma verve inauditas (para não falar do financiamento público de sites, blogs e influenciadores que disseminam notícia falsa – não notícia em favor do governo, nem interpretações forçadas, mas notícia falsa mesmo).
Vamos falar em partidos? De fato, ainda não mandou fechar nenhum, pois não teria força para isso. Mas o cotidiano de Bolsonaro é de criar um ambiente de guerra a qualquer ator político que lhe faça oposição: ele faz insinuações de violência em declarações, incita apoiadores e participa, no meio da pandemia, a seguidas manifestações que pedem fechamento do Congresso e do STF.
Vamos falar em liberdade de expressão? Bolsonaro é o mais conhecido abusador público e espalhafatoso da liberdade de expressão. Ele se utiliza desse escudo (e da interpretação judicial leniente) para celebrar ditadura, tortura, torturadores, violência policial, agredir mulheres, negros etc. E como presidente não decepcionou: usa o microfone mais poderoso da República para continuar a agredir os grupos mais vulneráveis da sociedade brasileira. Quem tem liberdade de expressão nessa história? Num ambiente de ódio e estigmatização de qualquer oposição, e de rejeição aos partidos como mecanismos de mediação representativa, nada mais faz do que corroer as liberdades.
Podemos falar em liberdade acadêmica (a liberdade de perguntar, ensinar, pesquisar) e liberdade artística também, se preferir.
Em segundo lugar, quem afirma que Bolsonaro não é um risco porque não deu um golpe no mesmo momento em que assumiu o poder, está pouco informado sobre os denominadores comuns dessa nova onda de autocratização no mundo. Bolsonaro integra uma nova geração de autocratas. E essa geração aprendeu novas técnicas de dissimulação e de tomada do poder. A cartilha do autocrata usa de seu sucesso eleitoral para ir solapando a integridade das instituições na lógica gota a gota. Bolsonaro acrescentou outros mecanismos a essa cartilha e a pandemia está lhe criando dificuldades não antes previstas. Esvaziamento de instituições de controle, abuso do poder de decreto ilegal, o inundamento do judiciário com normas grosseiramente inconstitucionais, desafiando o juiz a invalidar e apostando no stress institucional permanente. E uma notável politização das instituições de Estado, entre elas não só a Procuradoria Geral da República e a Advocacia Geral da União, ou órgãos de fiscalização ambiental, ou mesmo a ciência, mas as próprias Forças Armadas. O governo de Bolsonaro pode não ser ainda uma ditadura militar, mas é um governo de militares, um governo com mais militares que qualquer período da ditadura militar.
Nenhum presidente nos últimos 30 anos fez tanto contra a liberdade de imprensa, a liberdade de expressão, a liberdade acadêmica, a liberdade artística, a educação, a Amazônia e as terras indígenas como Bolsonaro. E olha que nenhum foi santo. Lula e Dilma ainda têm a tragédia de Belo Monte nas costas.
3 Para além de Bolsonaro e do movimento que ele inspira, existem outros atores – da política, da cultura, do judiciário – que contribuem para a depreciação da democracia e da política no Brasil?
Bolsonaro teve êxito em incorporar muitas dessas forças des-democratizantes em torno de sua chapa presidencial. Trouxe militares ressentidos com os crimes contra a humanidade praticados pelo regime militar; trouxe a parcela primitiva do agronegócio e da mineração, que pede desmatamento e eliminação de terras indígenas sem perceber que isso trará a inviabilização. no médio prazo, de seu negócio; trouxe o lobby do armamento que, sob o pretexto de armar o cidadão e gerar maior segurança, arma milícias, grupos paramilitares, multiplica a violência e a insegurança; trouxe grupos religiosos pré-modernos, que rejeitam a emancipação individual e a própria liberdade religiosa, e a separação entre Igreja e Estado. Por fim, trouxe também o sentimento anticorrupção sequestrado pela Operação Lava Jato, que em vez de aproveitar a oportunidade histórica para inspirar reforma institucional de combate à corrupção, que se faz por meio de aparato regulatório e fiscalizatório (de partidos, de contratos estatais, de eleições etc), confundiu as bolas e imaginou que juízes heróis e procuradores heróis empurrariam a história no combate das pessoas de bem contra as pessoas de mal. Nem que para isso aqueles heróis pudessem abrir mão do rigor jurídico. Confundiram o atacado com o varejo, não entenderam os limites do direito criminal e a necessidade de pensar em instituições, não na reforma moral dos indivíduos.
4 A gestão da crise provocada pelo coronavírus parece colocar os democratas num impasse: como tomar medidas firmes, impopulares, sem com isso descambar para o recrudescimento do autoritarismo, sob justificativa de defesa do povo e cuidado com a saúde pública?
Medidas de emergência contra a pandemia, no mundo inteiro, correspondem a restrições excepcionais à liberdade e ao incremento no poder de polícia. Restrições excepcionais à liberdade devem atender os requisitos da necessidade, prazo determinado e proporcionalidade, com base em evidência científica. Regimes de fechamento do comércio e de imposição de quarentena ou lockdown são restrições fortes à liberdade, mas são constitucionalmente aceitáveis e necessárias. Discute-se no mundo inteiro se autocratas vão aproveitar essa janela de oportunidade para concentrar mais poder. Como Bolsonaro não tem força para concentrar mais poder, como enfrenta obstáculos do Congresso, do judiciário e dos governadores, ele inverteu o sinal e optou por atacar pela outra frente: denunciar todos esses atos estatais como uma tentativa de implementação de uma ditadura.
O uso desse vocábulo – “ditadura” – é uma técnica retórica bastante presente no discurso populista da extrema direita. Eles simulam ameaças de todos os lados: é a ditadura gay, a ditadura do politicamente correto, a ditadura antirracista, a ditadura feminista. Agora passou a ser a ditadura comunista, a ditadura judicial, a ditadura dos governadores.
Essa liberdade que nada respeita, que não respeita a própria liberdade ou dignidade do outro, a liberdade “de ser infectado” – como disse Paulo Guedes para justificar a quebra a quarentena e a rejeição a recomendações sanitárias (sem reconhecer, como ele bem sabe, que essa “liberdade” traz consigo também o poder de infectar o outro) – é a antítese de qualquer projeto político liberal de emancipação do indivíduo. É profundamente antiliberal.
5 Você é um dos membros-fundadores do LAUT – Centro de Análise da Liberdade e do Autoritarismo. Como surgiu essa ideia, quais são os objetivos, o que será produzido, onde será veiculado?
O LAUT foi criado por um grupo de acadêmicos que quer fazer a ponte entre a pesquisa de excelência em ciências sociais, que nem sempre consegue ser traduzida para além da torre de marfim da universidade, e a esfera pública (isto é, a mídia, a sociedade civil, o debate público em geral). É um centro independente e suprapartidário, que pretende estimular não só uma discussão conceitual mais sofisticada sobre os múltiplos sentidos de liberdade na história do pensamento, mas também construir indicadores que nos ajudem a perceber de qual liberdade estamos falando quando se defende a desregulação da economia, a concentração de poder econômico etc. E também desenvolver as lentes para percebermos que, embutidos em nosso cambaleante projeto democrático, instituído pela Constituição de 1988, estão inúmeras práticas normalizadas de autoritarismo: desde os mais violentos e visíveis, até os micro-autoritarismos presentes em espaços difíceis de detectar, como a argumentação judicial por exemplo.
6 O que é o projeto da Agenda de Emergência e do Estoque Autoritário, lançado pelo site do LAUT na semana passada (laut.org.br)?
O Estoque Autoritário é uma busca de monitorar, a partir de uma boa sistematização dos tipos de prática autoritária no Brasil, o dia-a-dia do Estado brasileiro. Busca-se catalogar cada evento que corresponde ao uso de uma dessas técnicas tipicamente autoritárias, tanto formais (pelo uso da caneta jurídica) quanto informais (pela quebra de certos rituais e convenções que a liturgia democrática exige). Por exemplo: o esvaziamento de estruturas de controle e accountability, a fabricação de inimigos e de tensionamentos da esfera pública, a incitação para que apoiadores violem a lei e a promessa de leniência fiscalizatória. A Agenda de Emergência, por sua vez, corresponde a uma camada adicional desse monitoramento, que busca identificar não necessariamente atos autoritários propriamente ditos, mas aqueles elementos que trazem um “potencial” autoritário, um potencial de abuso. Como disse, emergências trazem a necessidade de restrições excepcionais de direitos e incremento do poder de polícia, por prazo determinado. Esse regime excepcional pode se dar dentro dos marcos democráticos e excepcionais. Mas há sempre o perigo, nessa zona de maior fragilidade institucional e de poderes excepcionais, de que a tentação autoritária escorra pelos dedos. Queremos lançar luz sobre esses aspectos.
Conrado Hübner Mendes é professor da Faculdade de Direito da USP. Doutor em Direito pela Universidade de Edimburgo. Mestre e Doutor em Ciência Política pela USP. Colunista da Revista Época. Autor dos livros: Constitutional Courts and Deliberative Democracy (Oxford, 2013); Direitos Fundamentais, Separação de Poderes e Deliberação (Saraiva, 2011); Controle de Constitucionalidade e Democracia (Elsevier, 2007). Membro-fundador do LAUT.
O Centro de Análise da Liberdade e do Autoritarismo (LAUT) é uma instituição independente e apartidária de pesquisas interdisciplinares, comprometida em produzir e disseminar conhecimento sobre a qualidade do estado de direito e da democracia. O LAUT tem como objetivo monitorar as diversas manifestações do autoritarismo e de repressão às liberdades, a fim de fundamentar a mobilização da sociedade civil e a defesa das liberdades.