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Ser um homem feminino não fere o meu lado masculino

Foto NELSON ALMEIDA/AFP (Foto: )

Emile Ratelband, holandês de 69 anos, entrou na justiça com um propósito dos mais nobres e urgentes: quer ter sua idade natural reduzida por vias legais. Ele não se sente confortável com o atual resultado da soma dos anos à data de seu nascimento, considera o fato deveras ultrajante, e exige ficar mais jovem. Civilmente, pelo menos.

De acordo com Ratelband, é um constrangimento ter de apresentar qualquer documento comprobatório de sua quase provecta condição, ou mesmo ter de declarar nos sites de relacionamento que nasceu muito tempo antes que a própria internet nascesse.  Depois de fazer o treinamento motivacional do americano (como não seria?) Tony Robbins, ele aprendeu que precisa visualizar seus sonhos para enfim realiza-los.

Para além de não gostar da idade que tem, afirma que não se identifica com ela. Eis um homem que não é um homem: é um corolário. Um homem que é uma consequência lógica de certos apelos tão nossos conhecidos hoje em dia.

Em tempos de fluidez e polêmicas em torno da identidade, o fanatismo identitário só poderia mesmo levar à era da pós-identidade. A “liquidez”, de que falava Zygmunt Bauman, aplicada à ontologia. Tenho minha idade, mas sinto ter outra. Sou feio, mas queria ser reconhecido como bonito (aguardem meus processos judiciais para breve, leitores). Eu sou eu, mas poderia ser outro – ou, como escreveu o poeta Mário de Sá-Carneiro, “eu não sou eu nem sou o outro”.

Pois está aí Bernardinho que não me deixa mentir. O time do competitivo treinador de vôlei foi vencido pelo time em que joga e se destaca Tiffany. Tiffany é a primeira jogadora trans a assinar contrato com um clube para disputar a Superliga Feminina de Vôlei.

A ponteira tem levado com sucesso seu ponteiro, retifico, seu talento para as quadras femininas. Como Tiffany não é exatamente menina como as outras meninas, porém uma menina mais fortinha, mais rápida e mais brutinha, isso tem causado desconforto na audiência. Mas não é de bom tom mencionar.

Desconforto esse que já tem sido combatido pelas hostes minoritárias que gostam daquela parte dos debates em que os debates acabam antes de começar. Bernardinho, pressionado, pediu desculpas. Ana Paula Henkel, uma das grandes jogadoras de sua geração, rebateu as críticas dos grupos e fincou pé. Não pedirá (nem deveria) desculpas por dizer o que está mais nada cara do que barba, se me perdoam o trocadilho.

Não me perdoem coisa nenhuma, prefiro assim.

Identidade social à parte, a biologia é de uma inconveniência cruel: Tiffany, que nasceu Rodrigo Pereira de Abreu, pode e deve se apresentar ao mundo como bem entender. E é chato ter de previamente lembrar que “não, não tenho nada contra a identidade de gênero em si mesma considerada”, para logo depois vir com a adversativa, “…mas” a verdade é que para algumas atividades o sexo impõe ou transcende limites e restrições.

Num meio em que a potência e o desenvolvimento físico contam sobremaneira, e o controle e a punição das trapaças hormonais fazem parte do regulamento, Tiffany acaba por ser uma trapaça hormonal ambulante. Ela não precisa tomar esteroides porque, comparada às outras jogadoras, ela é o esteroide de si mesma. Ainda que faça ou venha a fazer uma espécie de tratamento reverso para ser menos biologicamente homem do que é, o desempenho real nas quadradas confessa outra realidade. Como o título daquele livrinho outrora famoso em consultórios odontológicos e salões de cabeleireiras, “o corpo fala”.

Aliás, esse é um dos grandes problemas de se misturar as discussões entre sexo e identidade psicossocial, entre biologia e ideologia, entre cromossomo e opinião. Compreendo sem dificuldade que há muitas variações e adaptações no modo como um ser humano se vê no mundo ou se relaciona com ele; é possível, e de fato acontece, que a auto-compreensão – e auto-apreensão – psicológica e social algumas vezes seja distinta da constituição biológica. Até aí, problema nenhum.

O problema aparece quando a identidade assumida toma lugar da estrutura natural rejeitada, em momentos e áreas em que o que conta é esta, não aquela. Noutras palavras, quando a construção da identidade colide com demandas em que a identidade já construída, a da natureza biológica, exigem atenção. Ser capaz de separar bem as coisas, e saber balancear as reivindicações adequadas aos respectivos papéis sociais, só faria bem aos interessados.

A economista Deirdre McCloskey não se aproveita – muito pelo contrário – de sua transsexualidade para ser uma das mais argutas intelectuais de nosso tempo. Seu cérebro não depende das condições masculina ou feminina para estudar e produzir em economia. Entretanto, o corpo de Tiffany não responde pelos seus atos. O departamento é outro.

Sentir-se jovem num corpo velho, como o anedótico holandês, ou mulher num corpo de homem, ou acreditar ter sido Napoleão Bonaparte noutra encarnação, ou garantir ser um escapamento de carro nesta mesma encarnação – nada disso é, em si, nocivo a terceiros, contanto que ninguém submeta toda e qualquer relação social e jurídica à fluidez da própria identidade, ou pós-identidade, ou identidade nenhuma. Cada um no seu quadrado? De jeito nenhum; podemos e devemos conviver tranquilamente. Cada um na sua quadra.

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