No Podcast Ideias #66, acompanhando o raciocínio de Guilherme Fiuza, fiz um breve comentário sobre a estranha e cada vez mais obsessiva vocação para o vitimismo, que tem acometido tanta gente por aí, mais ou menos como uma espécie de catapora moral.
Essa tendência só não é mais estranha justamente porque me parece… tendenciosa. Há método na loucura e arrisco dizer: há mais método que propriamente loucura.
O sempre tão vilipendiado mundo ocidental, com sua abundância econômica, diversidade étnica e religiosa, liberdades individuais e garantias coletivas, parece ser propício ao surgimento de falsos dilemas morais, todos irrelevantes ou mais supostos que verdadeiros.
Noutras palavras: aparentemente, temos tido muito tempo livre para pensar, sentir, falar e escrever besteiras de toda sorte. Enquanto muitos no mundo ainda têm fome e milhares de pessoas são esmagadas por terroristas, regimes autoritários, trabalho escravo e tráfico sexual, existem outras tantas que, livres de problemas assim tão comezinhos, carecem de uma dor para chamar de sua.
Richard Vogt é um perigosíssimo especialista em conservação de tartarugas em água doce, que trabalha há vinte anos no Brasil. Depois de receber prêmio em reconhecimento à carreira, teve a láurea cassada porque as fotos da apresentação de sua equipe de trabalho foram consideradas ofensivas sexualmente ou inapropriadas. Algumas das pesquisadoras da equipe estavam de biquíni.
Escândalo.
O protesto começou, como não poderia deixar de ser, nas dantescas redes sociais. Vogt foi acusado de “sexismo” ou vagueza semelhante. Suas alunas o defenderam das acusações. Em vão. O cientista foi acusado, julgado e condenado. Que testemunhem a seu favor só prova que ele é culpado. Defender-se é acusar-se, no ordálio contemporâneo. Assim funciona o instantâneo e draconiano tribunal do politicamente correto.
Esse moralismo laico, histérico e maniqueísta – e, com a internet, tecnologicamente onipresente –, transformou-se na ética pública, na moeda das trocas simbólicas, em que a divisa é: “Perdoar o pecado, condenar o pecador.”
Numa arremetida demagógica contra valores que durante centenas de anos julgáramos fundamentais – senso de responsabilidade, fortaleza, coragem, autodeterminação –, o que estamos alimentando com esteroides culturais de duvidosa procedência é a ideia de que ser vítima de qualquer coisa, sentir-se vítima em qualquer estado, declarar-se vítima em qualquer situação, vale como antigamente valiam a santidade ou o heroísmo.
O vitimismo tornou-se categoria de pensamento, razão de ser, grife, ética, etiqueta, bons modos. Ofender-se, doer-se, reivindicar: nada disso precisa ter justificativa ou corresponder a fatos no cada vez mais vaporoso mundo real, cenário e palco de nossas excentricidades.
A vítima quer continuar a ser vítima, porque é isso o que ela é, é isso o que ela faz. A última coisa que ela quer é deixar de ser vítima. A propósito, que essas linhas tenham servido de resenha para o ótimo livro do ensaísta Francisco Bosco, A vítima tem sempre razão?, publicado pela Todavia. Recomendo especialmente às vítimas. Aquelas entre aspas.