A semana foi agitada. Na terça-feira, bolsonaristas estavam livres, leves e soltos, comemorando sem pudor nem piedade as ações policiais contra os inimigos ideológicos. Na quarta-feira, esperneavam diante de ações policiais que os tinham por alvo.
Como não poderia deixar de ser, procuraram às pressas um exemplar da Constituição Federal, subitamente lido, relido e acreditado, para protestar contra abusos judiciais dignos de um verdadeiro AI-5 – aquele ato, aliás, que gostam de invocar contra os desafetos. Karma is a bitch.
Mas, legalistas de improviso muito à parte, toda essa discussão entre garantismo de um lado e ativismo de outro, entre o direito e seu abuso ou desuso, me parece mal colocada. O embate se dá num outro nível. Mais alto. Mais baixo.
O arco melodramático que começa a ser encenado provavelmente em 2013, e atinge seu clímax com a vitória de Jair Bolsonaro, é um arco no terreno do poder, da teoria do poder, da legitimação do poder.
Reclamamos, com motivo, da magistocracia. Rejeitamos, com bom-senso, a confusão das competências. Não há jurista razoável que veja nesse inquérito das fake news – que tem início, meio e fim no próprio STF – qualquer sombra de constitucionalidade. Não há.
Porém, há poréns. O direito é uma cidadela prestes a ser invadida por bárbaros de todas as tribos, vindos de todas as partes: da moral, da economia, da sociologia e, principalmente, da política. No caso, da antipolítica. De quando em quando, forças incontroláveis emergem, derrubam os muros legais, redefinem o ordenamento. Fazem pouco caso das leis. Querem outras leis.
É inevitável. É da história. Num momento, os republicanos contra os monarquistas. Noutro, os socialistas contra os liberais. E depois os liberais contra os fascistas. E os fascistas contra os comunistas. E o matriarcado contra o patriarcado.
Temo que a disputa no Brasil se aproxime disso. Os bolsonaristas pouco se importam com o processo, as garantias, os direitos, o rito, o regimento, a presunção de inocência. São analfabetos democráticos. Não têm vocabulário cívico nem conhecem a sintaxe da razão.
Buscam colonizar o espaço da política, fazer de si o próprio Estado, substituir os tribunais existentes por tribunais de exceção. Não há um dia sequer em que não atentem contra rigorosamente tudo o que, já quase por preguiça, ainda chamamos de “instituições”.
Daí que os garantistas, com os quais eu simpatizo e me alinho, não compreendam (ou não queiram admitir) o que está acontecendo. Empunham armas jurídicas quando a batalha exige armas políticas. O jogo é mais sujo, a hora é mais escura.
Sei que meus argumentos podem se voltar contra mim (ou contra os princípios que defendo). Se há mesmo uma crise de legitimidade, se todo o sistema chacoalha, haverá quem tente reconstruir e haverá quem se aproveite para saquear o material da construção.
Foi o que aconteceu num certo 1789. Uns queriam a reforma e a manutenção de alguma ordem; outros propunham a subversão de toda a ordem e a revolução. Liberté, égalité, fraternité e direitos humanos; universalismo e guilhotina.
Espero que não tenhamos atingido o ponto de não retorno, mas longe dele não estamos. Curiosamente, os que hoje se proclamam conservadores são os que pretendem a ruptura; os progressistas (isto é, todos os outros que negam a ruptura) tentam reforçar os alicerces do edifício para que não caia de todo e nos soterre de vez.
Neste momento, Carl Schmitt tem mais a dizer que Hans Kelsen. Eu não queria que fosse assim, mas só sei que é assim.