Aos 88 anos bem vividos e bem escritos, morreu Tom Wolfe. Dos criadores do jornalismo literário – Gay Talese (O Reino e o Poder; Fama & Anonimato), Truman Capote (A sangue frio), Joan Didion (O álbum branco), Hunter S. Thompson (Rum: Diário de um Jornalista Bêbado; Medo e Delírio em Las Vegas) –, talvez Wolfe tenha sido o mais exemplar. No mínimo, o mais escandaloso. Em ficção, Fogueira das Vaidades é o romance mais conhecido e ainda se lê com proveito.
Mas seu legado é mesmo o new journalism, novo jornalismo ou jornalismo literário. Não tem segredo: emprestar da ficção técnicas narrativas e usá-las na reportagem, nos perfis, nos artigos. Contar histórias reais como se fossem, tivessem sido, ficção. De certa maneira, uma volta sofisticada às origens da segunda profissão mais antiga do mundo, que tinha muito de ficcional e “mentirosa” antes de se profissionalizar (e pasteurizar) ao longo do século XX.
Obituários deram conta de que a criatura morreu antes do criador, que o jornalismo literário já não tem razão de ser, nem lugar para existir, no mundo do fact-checking, da notícia instantânea, dos “idiotas da objetividade”, para citar aqui nosso jornalista menos jornalista e mais literário.
Pois o curioso é que minha percepção vai ao sentido oposto. Hoje, mais do que nunca, o que conta são narrativas e boas narrativas. A objetividade está aí, na tela de qualquer telefone celular. Produzir notícias está mais barato e se faz mais rapidamente.
Acontece um acidente de trânsito, um atentado terrorista, uma revolta popular, uma votação no Senado: qualquer tragédia é gravada e transmitida em tempo real por qualquer testemunha que esteja no local da tragédia. Twitter, Instagram, Facebook e blogs são meios de se divulgar o que se registra.
Existem os problemas e riscos de sempre, evidentemente: a credibilidade das informações e o perigo de manipulação. Mas tais perigos sempre existiram, são o efeito colateral do exercício jornalístico. Hoje temos meios de manipular informações, mas também muitos meios de verifica-las. Empate.
O que conta é a qualidade do texto que conta a história. Todas as informações factuais no processo de impeachment de Dilma Rousseff e na prisão do ex-presidente Lula são de domínio público. Mas qual é a história por trás de tudo? Isso vale mais do que o amontoado de “fatos”.
As empresas jornalísticas têm de se atentar à qualidade (intelectual) do jornalismo que se faz, porque produzir notícias – quem, o quê, onde, como e quando – já não é tão difícil assim, mas interpretá-las, compreendê-las e narrá-las – o porquê –, sim.
Lembro-me de que acusavam Paulo Francis de cometer erros factuais. Ele de fato os cometia, de vez em quando. Citava de cabeça, nem sempre conferia datas e nomes, caras e crachás. Entretanto, ninguém mais se lembra das datas e nomes errados; de Paulo Francis, sim. Sua opinião valia mais que as caras e os crachás.
Uma vírgula mal colocada pode tornar duvidoso o milagre mais acreditado; uma frase mal feita pode destruir a pretendida objetividade do que quer que seja – está aí Michel Temer que não me deixa mentir. Da criatividade de Tom Wolfe, o jornalismo literário é o que fica e, se Deus quiser, terá vida ainda mais longa que a de seu criador.
Para saber mais sobre new journalism
Janet Malcolm é uma das grandes jornalistas-escritoras; leiam A jornalista e o assassino, Anatomia de um julgamento e Psicanálise: a profissão impossível. Mais recentemente publicou o também ótimo 41 inícios falsos. De Norman Mailer, A luta é um primor, e O Super-Homem vai ao supermercado poderia ter sido escrito anteontem. O sul profundo e profundamente desalentado dos EUA foi retratado, com texto e fotos, por James Agee e Walker Evans em Elogiemos os homens ilustres. Hiroshima, de John Hersey, talvez seja a reportagem mais importante do século XX. No Brasil, um grande nome do gênero é Joel Silveira, e seus livros A feijoada que derrubou o governo e A milésima segunda noite da Avenida Paulista são bem escritos e bem pensados. Os Sertões, de Euclides da Cunha, é um monumento do jornalismo literário brasileiro, quando ninguém sabia o que era jornalismo literário. Esqueleto na lagoa verde, de Antônio Callado, é quase um thriller sobre a vida e o sumiço do Coronel Fawcett, no Brasil. Trinta anos esta noite (Paulo Francis) – memórias e jornalismo, fofocas e palpites, tudo feito como literatura – é essencial. Na Inglaterra, Geoff Dyer, um dos meus escritores prediletos, faz ensaísmo-reportagem de estilo inimitável e viciante (Yoga para quem não está nem aí; Mais um dia magnífico no mar). Para uma visão panorâmica do movimento, Marc Weingarten publicou A turma que não escrevia direito.