por Nicolau Olivieri e Gustavo Nogy
Madri, julho de 2019: o Juizado Social número 19 entendeu que 500 entregadores autônomos da empresa Deliveroo eram na verdade empregados dela. Em janeiro de 2019, uma das cortes holandesas também declarou que os entregadores da Deliveroo eram empregados, e não autônomos. Também em janeiro de 2019 a Corte de Apelação de Turim deu provimento parcial ao recurso de entregadores da Foodora para, reformando decisão anterior, enquadrar esse tipo de prestação de serviço na hipótese híbrida do art. 2º do Decreto 81 de 15/06/2018. O tribunal italiano refutou o enquadramento deles como típicos empregados, mas considerou haver uma relação de colaboração que se concretiza na prestação de um serviço pessoal, contínuo e organizado, com referência ao tempo e lugar do trabalho, hipótese na qual são devidas as garantias mínimas da legislação trabalhista italiana.
Em abril de 2019, reiterando entendimento anterior, de novembro de 2018, em relação aos entregadores de bicicleta do aplicativo Take Eat Easy, a Câmara Social da Corte de Apelação de Paris declarou que os chauffeurs da Uber são seus efetivos empregados. Em dezembro de 2018, na Corte de Apelação de Londres, Sir Terence Etherton e Lord Justice Bean – com a divergência respeitosa, conquanto aguerrida, do Lord Justice Underhill –, negaram provimento ao apelo da Uber para manter o entendimento da corte inferior, segundo o qual os motoristas do aplicativo teriam direito, como empregados, ao recebimento de salário mínimo e férias remuneradas.
Em outubro de 2019, o senado da Califórnia aprovou uma proposta de lei que permite o enquadramento dos motoristas da Uber como empregados, devidamente sancionada pelo Governador Gavim Newsom, isso depois de a Suprema Corte daquele estado ter estatuído, em abril de 2018, um critério de enquadramento que muito provavelmente faria com que os motoristas acabassem sendo considerados empregados.
A discussão é mundialmente relevante e exige cuidado.
No Brasil, julgamentos sobre o tema vêm se tornando mais comuns, com certa propensão no sentido de se entender pela inexistência de vínculo de emprego.
Tome-se o recentíssimo caso julgado pelo TST em 05/02/2020 (1000123-89.2017.5.02.0038), em que foi dado provimento por unanimidade ao recurso de revista da Uber para declarar a inexistência da relação de emprego entre ela e um de seus motoristas cadastrados.
Porém, noutro processo (RT 0010806-62.2017.5.03.0011), a 11ª Turma do Tribunal de Minas Gerais seguiu mais de perto a linha de Sir Etherton e Lord Bean, para enfim declarar a existência da relação de emprego, em alguma medida.
A prestação de serviços por meio de plataformas de internet e aplicativos é praticamente idêntica no Brasil, na França, na Inglaterra ou na Califórnia, assim como são bastante similares os requisitos e critérios de pagamento dos prestadores de serviço.
Por que, então, um enquadramento legal tão diferente? Por que as cortes francesa e inglesa consideram o motorista da Uber empregado, de acordo com a lei deles, e nós, aqui no Brasil, ainda não?
Não deixa de ser curioso, aliás, na comparação entre os vários julgados a respeito do tema, em diversos Tribunais no mundo, que justamente os Tribunais brasileiros, ao menos até agora, tenham se mostrado mais propensos a não reconhecer qualquer proteção aos trabalhadores.
Porque, convenhamos, esse é o ponto: proteção. Milhares de pessoas, no mundo todo, fazem do trabalho na Uber e demais aplicativos seu ganha-pão, num contexto de evidente relação econômica. Não é porque o direito não desenvolveu um conceito para enquadrar a realidade que a realidade deixa de existir.
Em maio de 2019, prestadores de serviço da Uber realizaram uma inédita paralização internacional de trabalhadores de um mesmo “empregador”. Ainda que com resultados duvidosos, o fato é que vários motoristas pararam de atender pela Uber de Los Angeles até Sidney – passando por São Paulo. Não se tem notícia, na história, de uma “greve internacional” dessa dimensão. Karl Marx ficaria orgulhoso.
Seja qual for a natureza da relação de trabalho, a realidade social desses trabalhadores demanda, de alguma forma, providências. Ou por parte do legislador – como o italiano, com aquela solução híbrida (e bastante perspicaz) –, ou por parte do Judiciário (que, por aqui, tem se antecipado ao Legislativo).
A legislação brasileira é excessivamente rígida em relação à própria definição da relação de emprego. Basta uma leitura dos acórdãos estrangeiros para notar que o uso de conceitos mais flexíveis tornou possível à corte francesa reconhecer alguma subordinação onde, no Brasil, não se reconheceria em nenhuma hipótese.
É um caso curioso em que o ultraprotecionismo da legislação trabalhista brasileira acabou tendo um efetivo reverso. A lógica econômica parece cruel, mas é mais lógica do que a cabeça de muito jurista. Limitar o conceito de trabalho tende a restringir a oferta de trabalho. Obrigar o empregador a oferecer garantias demais quase sempre termina com o trabalhador recebendo garantias de menos – na absoluta informalidade.
Quando, no Brasil, o legislador buscou trazer alguma margem de manobra aos conceitos trabalhistas, criando o contrato de trabalho intermitente por meio da Reforma Trabalhista, foi alvo de inúmeras críticas. “Precarização”, era do que se acusava.
Infelizmente, a vida é muito imperfeita para que se imagine possível uma relação jurídica perfeita como a relação de emprego celetista “pura” ou “ideal”. O que é precário, hoje, não é o trabalho. É tudo: do casamento às amizades, do entretenimento ao trabalho.
O contrato de trabalho intermitente não precariza um trabalho que antes era maravilhoso: ele busca atrair um mínimo de garantias para uma forma nova de trabalho. Antes do contrato intermitente não haveria aquele emprego intermitente, não haveria aquele empregado intermitente e nem aquelas garantias mínimas. Talvez não houvesse trabalho nenhum.
É o risco de se rejeitar o possível na falta do impossível. Não existe e provavelmente não existirá um mundo ideal do trabalho ou dos contratos, em que todos ficarão sempre muito satisfeitos. Os ajustes sociais se dão em meio aos conflitos e às colisões entre direitos e deveres, oferta e demanda, empregados e empregadores.
Na primeira revolução industrial, por exemplo, o trabalho também era precário: inseguro, desgastante, sujo. Socialistas, quase sempre anacrônicos, costumam apontar isso para justificar revoluções e greves. O probleminha é que, antes do surgimento da indústria moderna, o que havia no campo não eram famílias simples e humildes vivendo de colher maçãs e beber água pura. O que havia era fome. A realidade do campo era, ela sim, bastante precária. A luta pela sobrevivência sempre foi a luta contra as condições precárias da sobrevivência.
O mundo do trabalho mudou e as condições são melhores. É bom que seja assim e ninguém negará isso. Mas, ressalva importante, o mundo do trabalho continuará a mudar. Se o enquadramento formal é de “empregado” ou “não-empregado” talvez seja menos relevante do que a própria transformação do conceito de trabalho.
O que se deve buscar é um patamar mínimo de garantias, especialmente previdenciárias, que deem satisfação à demanda dessa nova realidade social e não prejudiquem a continuidade da atividade econômica, inviabilizando-a ou tornando-a excessivamente onerosa. O desemprego absoluto é um pouquinho pior do que o emprego supostamente precário. Ou, como dizem, o ótimo é inimigo do bom.