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Em mais um de seus discursos, Jair Bolsonaro repetiu os truques manjados já faz tempo: reconheceu, com má vontade, a gravidade da situação, mas tratou logo de jogar a responsabilidade pelo desemprego nos prefeitos e governadores, enquanto assumiu para si o papel de João Batista da salvação que se aproxima. Que ele se lembre do destino de João Batista.
Ele não sabe se acredita na pandemia, como se doença fosse matéria de fé. Sua fala é a fala titubeante, desinteressada e protocolar de quem está descrente do alto número de mortos, do baixo número de leitos, da consternação mundial. Ou não está convencido, ou pouco se importa.
Talvez não exista mandatário nenhum que minimize o estrago causado pelo coronavírus, que já matou, em quarenta dias, mais que H1N1, dengue e sarampo mataram no ano inteiro de 2019. Nos EUA, país insuspeito de tramas comunistas, foram registrados quase 2 mil mortos nas últimas 24 horas. No total, perto de 13 mil pessoas morreram em dois meses. Não, isso não é uma gripezinha qualquer, admitam ou não os fanáticos da normalidade.
Enquanto Mandetta se esforça (ou se esforçava) para seguir as melhores práticas sanitárias adotadas do Japão à Itália, de Singapura à América, seu chefe insiste numa dialética irresponsável que opõe a saúde pública imediata à retomada da atividade econômica. Olha para o vírus e diz: ou ele ou eu.
A cada pronunciamento, a cada declaração, o gênio de Bolsonaro fica mais evidente: ele é uma espécie de polímata da ignorância. Está errado e produz erro em muitas disciplinas, ciências e artes diferentes. Um Leonardo da Vinci do obscurantismo tropical. Que lhe reputem como futuro Nobel da paz é o coroamento de uma farsa em que não se sabe quem são os atores e quem é a platéia.
Ninguém, em sã consciência, é ou pode ser contra a cloroquina ou o que quer seja. O bom jornalismo dá notícia dessa e de outras possibilidades de tratamento e linhas de pesquisa mais ou menos promissoras. Alguns estudos inspiram otimismo, outros nem tanto. Cura não há. O que há é a esperança de muitos e a economia eleitoral de outros tantos.
Não por acaso essa pressa. O desnorteado governo precisa de milagres mais milagrosos que a cloroquina até outubro de 22. Paulo Guedes que lute. Daí que qualquer emplastro Brás Cubas sirva, tenha de servir, para tratar tudo: de coronavírus a conspiracionismo, de fanatismo a recessão.
Os céticos de milagres científicos não “torcem para o vírus” e contra o governo, acusação oriunda de meretrícios ideológicos que não frequento. Muito pelo contrário: se Bolsonaro defender o chá de camomila e o chá de camomila funcionar, brindo ao chá de camomila. E tomo-o, mesmo que o preço seja sua reeleição. Prefiro ter saúde com presidente ruim a estar doente com presidente bom.
Mas o ponto não é esse, em definitivo. Não temos resultados consistentes. Resultado consistente não é dar certo num punhado de casos, não dar certo noutro punhado. O mundo não continuaria brincando de esconde-esconde à toa. Donald Trump não estaria atravessando compras e pirateando máscaras e aparelhos se a cloroquina e a hidroxicloroquina fossem Marta e Maria.
O problema com o populismo medicinal e a falta de jeito com a prática científica é com isso assumir o risco de antecipar a incerteza da cura para acabar de vez com a certeza da prevenção, objetivo de cada fala presidencial desde o primeiro cadáver. Os efeitos dessa atitude podem ser dois, ambos perigosos: o remédio causar males ainda não suficientemente conhecidos, ou dar a ilusão de imunidade.
Esperamos que os cientistas encontrem tratamento, muito em breve, para a desgraçada moléstia. Mas em breve não quer dizer agora. Bolsonaro é um presidente, um agente político, não é especialista de nada. Sua vontade não pode se sobrepor à prudência médica, porque há outras vidas além da dele em jogo.
Principalmente se a vontade significar relaxamento de medidas que, estas sim, parecem ter efeito concreto e indiscutível na contenção do vírus e, por consequência, na contenção das mortes. Se ele se incomoda com isso é outra história.