Millôr Fernandes dizia que jornalismo é oposição; o resto é armazém de secos e molhados. Concordo com ele. Faço a ressalva de que não sou jornalista, em sentido estrito; sou escritor que participa do debate público por meio do jornalismo de opinião.
Opino sobre os fatos políticos e as ideias que os envolvem, produzem ou deles são consequência. Não faço reportagem, não invento nem apuro notícia. Colho, desta Gazeta e de outras fontes, as informações de que preciso para pensar e comentar, bem ou mal, o que me interessa.
Minha responsabilidade, que assumo com gosto, move-se no âmbito das ideias e da falta de ideias. Quando critico, critico o que julgo ser errado, limitado, equivocado, temerário, imprudente, engraçado, antiético, amoral, imoral. É uma tomada de posição, uma espécie de engajamento intelectual, às vezes moral e, por que não?, estético.
Considerando que eu e o leitor, qualquer leitor, somos diferentes, mesmo quando concordamos, acontecerá mais de uma vez que essas nossas diferenças saltem para o primeiro plano. Ainda assim, não há problema. Para facilitar, tomemos a eleição e a vitória de Jair Bolsonaro como exemplo dessa aproximação-distanciamento entre quem escreve e quem lê.
Uma das frases que mais li, no período eleitoral, foi a vagamente autoritária “Pode Jair se acostumando”. Sim, autoritária, até certo ponto, porque não se tratava de argumento, mas de slogan, palavra de ordem, frase de efeito, qualquer coisa que soa como um “agora vocês vão ver”. Ameaça frágil, publicitária, de cachorro que mais late que morde, mas ainda assim ameaça.
Outra, que leio muito desde a confirmação da vitória, é “Deixa o homem trabalhar”. Ou seja: abstenhamo-nos da crítica, suspendamos a incredulidade, porque o governo nem começou e Bolsonaro tem o direito de não ser criticado antes de ter dado motivo para críticas. Esta frase é interessante, e dela me valho para deixar mais explícita minha posição.
Sou escritor e escrevo num jornal; Bolsonaro é presidente e governará um país. A diferença de escala é notável. Minha influência sobre o leitor é pequena; minha influência sobre o país inteiro é nenhuma. Nada do que eu escreva provocará queda ou alta da Bolsa de Valores. O país, o estado, a cidade, até o condomínio onde moro não deixam de funcionar por causa de um texto meu. Bolsonaro, entretanto, não pode dizer o mesmo.
Ele é o homem mais influente – e hoje, sob certo aspecto, mais poderoso – do país. Recebeu quase 60 milhões de votos. Governará para esses 60 e para todos os milhões que nele não votaram. Uma declaração sua, uma medida equivocada, uma resposta intempestiva – qualquer coisa que ele faça, deixe de fazer, fale ou deixe de falar tem o poder de mudar, para pior ou melhor, a vida de quem mora no Brasil. A minha, a sua.
Não apenas a nossa vida, aliás, mas a das gerações futuras. Um governo ruim afeta a vida dos filhos; um governo desastroso afeta a vida dos netos. O presidente monta equipe econômica, cria ou extingue ministérios, assina ou rompe acordos, extradita ou concede asilo, fecha ou abre fronteiras. As Forças Armadas respondem ao presidente. O Banco Central, independente o quanto seja, também responde ao presidente. E assim por diante.
Que faz, então, o comentarista político? Comenta. Não muito mais do que isso. O leitor sabe que Bolsonaro não foi minha escolha. Dos candidatos à direita, considero-o medíocre: sua carreira parlamentar não é gloriosa; sua vida intelectual não é notável; seus feitos humanos não são heroicos.
Portanto, não vi e não vejo motivo para acreditar nele como o Messias que de nome é. Devo “deixar o homem trabalhar”? Pois ele não precisa da minha permissão. Sobretudo: ele tem mais é que trabalhar mesmo, já que se prontificou para o cargo. Eu, não. Eu não quero nem ser síndico do prédio. Porém, criticá-lo é, do meu ponto de vista, um dever. Assumo esse modesto dever. Me deixem trabalhar.
Comprometo-me a não escrever de má-fé, tendo como fonte notícias objetivamente falsas ou suspeitas. Tenho o cuidado para que minhas opiniões partam de informação compartilhada, conhecida e verificável por todos.
Mas, em tempos tão conturbados, entre certezas tão sólidas, importa o registro de que criticar não é odiar; é criticar. É ver as coisas com olhos menos condescendentes. Ele teve a confiança de 60 milhões de pessoas. Parece-me o suficiente para governar.
Por fim, se não há, na visão de muito leitor, fortes razões para criticar Bolsonaro, não há, na minha visão, fortes razões para enchê-lo de elogios. Como estou certo de que o leitor (e eleitor) continuará a confiar no político em quem votou, e isso é legítimo, também eu continuarei a desconfiar do político em quem não votei, e isso é igualmente legítimo.
H.L. Mencken, com a espirituosa má vontade de costume, observou que raramente temos motivos para acreditar que o novo governo será melhor do que o antigo; quase sempre a história mostra o contrário. Pelo sim pelo não, em matéria política, prefiro o ceticismo à fé.
Sim, deixemos Jair Bolsonaro trabalhar: já vou me acostumando. Sim, deixemos o comentarista criticar: já deveriam ter se acostumado. Façamos ainda melhor: desconfiemos de ambos. Mas garanto que este último tem menos poder para atrapalhar a vida do leitor que aquele primeiro. Afinal, o crítico só critica; já o presidente pode fazer estrago maior.