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A jornalista Maria Clara Vieira acaba de chegar à Gazeta do Povo. Trabalhará na editoria Ideias. (Seja muito bem-vinda, MCV!) Semanas atrás, ela me fez algumas perguntas sobre literatura, eu as respondi, mas por essas e outras da vida jornalística o papo acabou numa gaveta. Da gaveta à Gazeta foi só editar.
MCV: Ler é sempre importante. Em tempos de medo, incerteza e isolamento, ler ficção tem alguma relevância, para além da distração?
GN: A ficção (também a poesia) é uma espécie de insanidade artisticamente controlada, que ensina a lidar com a insanidade em sentido estrito. Para além de distrair, e distrai, nos deixa mais atentos. Não atentos como um comentarista político ou econômico precisa ou finge estar atento, o que muitas vezes, falo por mim, pode ser uma ruidosa forma de desatenção.
MCV: Por causa da pandemia, as distopias andam em alta no mercado. Acredita que elas são o subgênero mais recomendado para o momento? Suponho que as reflexões produzidas por uma distopia sejam diferentes das de um épico, por exemplo (não sou grande leitora de distopias).
GN: Não acredito e nem sei se recomendo. Quer dizer: qualquer boa leitura é recomendável. Quem quiser ler os romances e contos distópicos disponíveis, leia. Sou a favor da ideologia de gênero: quer ler poesia? Leia. Quer ler teatro? Leia. Quer ler crônica? Leia. Etc. Mas o fato (ou a impressão?) de que talvez estejamos vivendo (n)uma espécie de distopia me faz considerar que precisamos de uma literatura que aponte outro caminho, mostre outras coisas. A realidade (essa daí, que a gente encontra quando sai à rua) está tão próxima de certos enredos literários que é quase como se lêssemos notícia de anteontem. Que graça tem ler livros sobre a ascensão de um governante biruta se é isso o que lemos no jornal? Que graça tem assistir ao Dr. Strangelove... se eu sou obrigado a assistir às lives do Dr. Bolsonaro?
MCV: Sagas fantásticas são vistas como boas fontes de distração, mas, eventualmente, são acusadas de levar o leitor ao “escapismo”. O que pensa sobre isso?
GN: Toda literatura é escapista. Já ninguém mais deveria acreditar na superstição do realismo. Não existe literatura realista, sentido estrito, porque se o livro literário retratasse fielmente a realidade seria relatório, burocracia, ementa, nunca literatura. O texto de ficção e de poesia recombina dados, alucinações, experiências, lembranças e imaginações para dar ao leitor uma realidade a um só tempo menos e mais real que aquilo que conhecemos vulgarmente como realidade. Além de uma estética, a literatura é também uma prática de conhecimento, uma epistemologia. Se vivo somente a minha vida, vivo uma vida pequena, mesquinha, limitada no tempo, no espaço, na etnia, na educação. Se leio ficção, vivo a vida de Hamlet e Falstaff, de Quixote e Pança, de Ivan Ilitch e Anna Kariênina, de Raskólnikov e Aliócha, de Nafta e Settembrini, de Bouvard e Pécuchet, de Holmes e Watson – e o elenco é ilimitado. Convenhamos, conhecer todos é bem melhor do que conhecer somente a mim mesmo. É nesse sentido que Flaubert dirá, não sem ciúmes: “Bovary sou eu”.