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Pela enésima vez, assistimos à repetição do mesmo esquete no circo democrático brasileiro: o presidente eleito toma parte em manifestações que pedem intervenção militar, fechamento de Congresso, fim do STF e edição atualizada do AI-5.
Diante do quartel general do Exército, em Brasília, um Jair Bolsonaro que se desafazia em tosse e pigarro puxou o fôlego para atentar contra a legitimidade do sistema do qual ele próprio vive e se aproveita há tantos anos.
Imediatamente, os representantes do Congresso, do STF, da OAB e de alguns partidos políticos emitiram notas de repúdio a mais um ato desordenado cometido por quem deveria zelar pela ordem. É bom mas é ruim. Retifico: é bom mas é pouco.
No dia seguinte, lá estava o presidente a dizer que não disse o que disse, a fazer juras de amor à normalidade institucional, a prometer que aquela vez terá sido a última.
“Eu sou, realmente, a Constituição”, pontificou, escandindo as sílabas.
Mas, ao contrário de quem se apressa na tarefa de caiar o sepulcro, não há recuo nessa fala: há avanço.
Bolsonaro trata a Constituição como um marido abusador trata a mulher: ela lhe pertence para ser agredida quando ele bem entende. Então agride, finge arrependimento, promete que não fará de novo, para novamente agredir, fingir, prometer e agredir. São histórias das quais a gente conhece o fim.
É o que parece estar acontecendo com o país.
Em toda a sua inexpressiva carreira política, as únicas coisas que expressou enfaticamente foram seu desapreço pela ideia de democracia e seu apego aos benefícios do funcionalismo público. Sinto dizer, leitor, mas isso não é minha opinião: é opinião dele, declarada com bastante orgulho, aliás, em dezenas, centenas de laudas e horas disponíveis para consulta dos incréus.
Por outro lado, as notas de repúdio já não produzem efeito nenhum, e vão acabar se transformando num gênero literário tipicamente brasileiro, tão inútil quanto os manifestos de intelectuais de esquerda. É preciso muito mais do que isso. É preciso constranger o presidente com as armas jurídicas e institucionais que estão à nossa disposição.
Eleger-se – ainda que de forma legítima – não confere poderes ilimitados a nenhum mandatário, a despeito de sua popularidade ou carisma. E não se invoque o povo para justificar o injustificável, porque o povo, entidade amorfa a que Bolsonaro tanto recorre, também está submetido à lei. Esse é o bê-á-bá da “civilização ocidental”, expressão-fetiche dos intelectuais orgânicos do bolsonarismo.
A não ser que estejamos querendo mesmo um califado.