Era uma vez um escorpião que se aproximou de um sapo à beira do rio.
“– Amigo Sapo, você me levaria à outra margem do rio?”
“– Não sou louco, você vai me picar no meio do caminho!”
“– Ora, Sapo, bem capaz! Se você se afogar, também me afogarei!”
O Sapo acha bastante razoável o argumento. Ambos começam a atravessar o rio, o Sapo leva o Escorpião. Lá pelas tantas, sente a ferroada. Começam a afundar.
O Sapo pergunta:
“– Por que você fez isso? Vamos morrer!”
E o Escorpião singelamente responde:
“– Me desculpe, Sapo, mas é minha natureza.”
Lembrei-me da fábula ao ler a entrevista do ansioso General Mourão, sobre a oportunidade de uma nova Constituição Federal. Mais uma ideia de jerico para as obras completas, papel-bíblia, mil e duzentas páginas.
Não morro de amores pela Constituição de 88, dita “cidadã”. É extensa, analítica, pormenorizada e, sob alguns aspectos, autocontraditória. Inaplicável em sua inteireza. São tantos os comandos normativos, os direitos e os deveres, as pretensões e as expectativas, as regulações e os princípios, que nem mesmo o próprio Deus conseguiria fazer cumprir tudo.
Mas um país não melhora trocando a Constituição de tempos em tempos. Acreditar que ela é a maior causa dos nossos problemas soa ingênuo, na melhor das hipóteses; vindo de um postulante à vice-presidência, soa coisa pior. Esse tipo de argumento é menos argumento e mais prestidigitação: “Se os holandeses nos tivessem colonizado”, “Se o Estado fosse mínimo”, “Se ainda fôssemos uma monarquia”.
Ironicamente, a inaplicabilidade prática de muitos dos artigos constitucionais termina por fazer dela uma Constituição pouco cumprida, ainda que muito comprida. Se não é obedecida, então o problema é outro. No país das leis que não pegam, a CF é uma grande lei que em parte não pegou. Sendo ruim, tem seu lado bom.
Entretanto, a inconveniência de um novo documento é maior do que parece. O momento é ruim. A especulação é ruim. Os personagens são ruins. Não acredito que hoje faríamos coisa melhor do que fizemos naqueles anos. Estamos pior do que estávamos, de alguma maneira. Certamente mais confusos.
Eu disse que o momento é ruim, mas corrijo: o momento é péssimo. Constituição não é reserva de nióbio nem de grafeno, escondidinha debaixo da terra à espera de pesquisadores destemidos e escavadeiras de última geração. A Carta responde a todo um contexto cultural, ético e, sobretudo, político, que nem sempre é o melhor contexto.
Os defeitos da CF 88 são efeitos colaterais de vinte anos de regime militar. O pêndulo foi ao outro extremo ideológico. Aquela saraivada de garantias, por mais que hoje nos pareçam ridículas, no fundo são o contragolpe social e político a tanto tempo sem garantias sociais e políticas. Definir por lei até o formato do pãozinho foi a maneira que encontramos para compensar o fato de que não podíamos escolher nem o padeiro, nem as leis.
Por essa mesma razão, o momento não poderia ser menos propício para uma nova Constituinte.
Um ex-presidente preso ainda corta o baralho da política nacional. Centenas de políticos investigados numa operação que tem engolido a todos. Um grande conglomerado de partidos espera que qualquer um chegue ao poder para repartir o Estado. O principal candidato da oposição é esfaqueado e, de resto, não consegue esconder seu desapreço pela democracia em sentido estrito. É com essa matéria-prima política que se pretende escrever uma nova Carta?
Pelas vias legais, seria um problema gigantesco. Enorme, enorme. Lançaria o país num impasse político e institucional que, por comparação, faria deste nosso momento um feriado no parquinho. A não ser, é claro, que estejamos flertando com uma Constituição biônica, chavista, enfiada goela abaixo na garganta do eleitor para ver se, do engordurado fígado civil, sai um refinado foie gras político.
Last but not least, o hipotético vice-presidente nos vem com o inesperado satori: uma junta de notáveis escreve novo texto e funda inédito ordenamento. Elaborações e participação dos representantes populares são demoras que não interessam. Precisamos de uma CF melhor? Façamo-la de uma vez por todas. Depois consultamos o povo, via plebiscito, como se estivéssemos tratando de eleições corriqueiras, e como se o diploma fosse um candidato que nós aprovamos ou não – in totum.
O resultado dessa movimentada aventura jurídica, com o afastamento do Congresso e do STF dos trabalhos, será conceder legitimidade e plenos poderes a um documento e a um governo que não terão tido, de fato, representação popular, salvo no momento limite do escrutínio. Com Hugo Chávez o plebiscito deu tão certo, por que não daria certo conosco? Basta combinar com os russos. Os nossos russos, de verde-oliva.
É decepcionante que tanto eleitor tenha gostado da ideia. A paixão política faz o avesso do milagre bíblico: cega até aqueles que mais deveriam enxergar. Quando Marina Silva e João Amoedo propuseram que a descriminalização do aborto fosse decidida mediante plebiscito, houve imediata grita e arrebatada rejeição. No entanto, a depender de quem propõe, o que se rejeita na parte, aceita-se no todo. Plebiscito vale para o mais (Constituição), não vale para o menos (um artigo do Código Penal). Esta parece ser a nova ordem, um tanto fora de ordem. É melhor o povo já ir se acostumando.
Moral da fábula
O sapo é o eleitor.
O rio é a eleição.
A outra margem é a democracia.
E o escorpião vocês sabem quem é.
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