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A quaresma é um tempo muito peculiar de certa tradição cristã.

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Não sei exatamente quando isso aconteceu, mas em algum momento o cristianismo foi se tornando um conjunto de superstições mórbidas, enfatizando a coragem dos mártires, ou fazendo que a paixão e morte de Cristo se tornassem algo mais relevante que sua vida, seu exemplo e seus ensinamentos.

Por tudo isso, a Quaresma se tornou um período que deveria ser cumprido com rigor: os quarenta dias que antecedem o período de celebração e memória da paixão, morte e ressurreição de Cristo.

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Um período de contrição, em respeito ao sofrimento do Filho de Deus.

O Carnaval, inclusive, virou aquele “liberou geral” justamente para as pessoas agüentarem os 40 dias de restrições da Quaresma.

Entre as restrições, a probição de comer carne – somente o peixe é permitido. Também não se fazem festas e não se tocam os sinos das igrejas, por isso surgiu o costume dos padres saírem às ruas tocando suas matracas para conclamar os fiéis à missa.

Entretanto, o caso que foi considerado o evento fundador da Reforma Suíça começou com uma quebra das restrições impostas pela tradição na Quaresma.

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O epidsódio ficou conhecido como “o caso das salsichas”, e ocorreu em Zurique, no primeiro domingo da Quaresma de 1522.

Nesta época, a Reforma já corria solta nos principados alemães, e Lutero era um dos maiores polemistas da Europa.

Zwínglio não lhe ficava muito atrás. Tinha sido eleito pregador da igreja de Zurique em 1519, e reunia uma turma para estudar e discutir a Bíblia na oficina do editor Froschauer.

Vale lembrar que, no início do século XVI os editores eram como hoje os blogueiros, tuiteiros e hackers – pessoas perigosamente inovadoras e radicais na defesa da possibilidade de usar novas tecnologias para difundir o conhecimento.

Muitas vezes se comenta que alguns radicais zwinglianos se empaturraram de salsichas na Quaresma, mas parece que o caso não foi bem assim.

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Aconteceu que Froschauer tinha prazos a cumprir com algumas impressões para uma feira, e ele e sua equipe precisaram trabalhar dia e noite para isso. No meio da maratona de trabalho, não seria suficiente alimentarem-se somente com frutas, e o peixe era caro demais.

Então os trabalhadores comeram umas salsichas no desjejum, um fato que acabou escapando do âmbito da oficina do editor e terminou por levar Froschauer a depor perante o Conselho da cidade.

Froschauer argumentou com sua necessidade profissional, mas não deixou de apontar para a interpretação bíblica, digamos, mais flexível, de Zwinglio.

O renomado pregador poderia ter se desvinculado do episódio, e assumido uma posição de contemporização. Mas o que ocorreu foi que ele fez mais uma célebre pregação duas semanas depois, defendendo a liberdade de consciência dos cristãos para comerem o que quisessem na Quaresma.

Uma coisa tão banal como comer salsichas acabou se tornando no estopim de uma revolução no país, que ficou dividido entre cantões favoráveis a Roma e os classificados como “reformados”. O próprio Zwinglio veio a morrer numa guerra entre cantões católicos e reformados.

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E suas idéias teológicas deram origem aos grupos radicais anabatistas e também ao calvinismo, implantado a partir do também suíço cantão de Genebra.

Toda vez que chegamos na Quaresma eu não deixo de me lembrar deste curioso episódio, e de pensar o quanto a discussão teológica e as idéias religiosas já foram elementos progressistas e radicais.

Nunca me conformo que o cristianismo precise aceitar posições tão conservadoras como as que normalmente lhe são associadas.

E aproveitando o ensejo, vou passar a Quaresma comendo minhas salsichas.

P.S.: um pouco mais sobre a questão no livro de Carter Lindberg. E neste texto em alemão que não tenho exata certeza de que entendi tudo direito, nem cosegui descobrir o autor.

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