A participação do Brasil na 2ª Guerra Mundial é cheia de possibilidades interessantes para tratamento cinematográfico ou literário. Na literatura, talvez a melhor experiência seja o livro de Boris Schneidermann – Guerra em surdina, uma ficção com ares de história produzida por um escritor e tradutor que foi pracinha da FEB.
No cinema, incrivelmente o tema era inédito, até a produção de Estrada 47 – filme escrito e dirigido por Vicente Ferraz. Este filme é a estreia do diretor na ficção, pois até o momento ele só tinha dirigido documentários. Talvez a “mão” de documentarista seja bem perceptível na estética deste filme, o que a meu ver valoriza o resultado. Afinal, o filme é totalmente fictício, mas também é bastante verossímil do ponto de vista histórico.
Os personagens são 4 soldados e um jornalista – os 5 da foto que ilustra o post, que partem para uma missão não oficial: desativar as minas da Estrada 47, o que permitiria ao exército norte-americano libertar uma vila nas montanhas.
Ao contrário dos tradicionais filmes norte-americanos sobre a guerra, o forte de Estrada 47 não é o heroísmo ou a cenas de ação. Os brasileiros são, na verdade quase anti-heróis, com poucas condições de enfrentar um conflito em terra estranha e debaixo de neve. Mas acabam praticando um brilhante ato de heroísmo inconsequente. Neste aspecto, ficção e história se entrecruzam de maneira brilhante, pois as informações históricas apontam exatamente para isso: uma FEB despreparada tecnicamente, que mesmo assim teve papel destacado nas missões que lhe couberam. (Aliás, vale a pena consultar o bem elaborado verbete da wikipedia, onde se remete a uma bibliografia razoável)
Os soldados brasileiros pertencem ao Batalhão de Engenharia: Tenente Penha, Sargento Laurindo, Guima e Piauí – da esquerda para a direita na foto acima. O de cigarro na boca é o jornalista Rui. No meio de suas aventuras, o grupo encontra um desertor italiano e captura um oficial alemão, levado junto na missão.
Pra mim, o ponto alto do filme são as tensões entre os personagens. O momento memorável é quando estão os três dentro de um tanque americano explodido: Piauí, Laurindo e o alemão. Piauí pergunta: “Na Alemanha não tem nada interessante pra fazer? Só guerra? Não tem futebol, vocês não namoram?” A cena termina com Laurindo cantando um samba de sua autoria, enquanto os três trocam informações sobre suas famílias e seus times de futebol preferidos.
O que remete a outra sacada muito interessante do filme, que são as referências subliminares. Por exemplo, o nome Laurindo escolhido para o personagem negro no filme, não é um nome abstrato, e remete a referências muito importantes do mundo cultural e político dos anos 40. “Cabo Laurindo” é um célebre personagem de samba de Wilson Batista, “defensor da igualdade” – também chamado de “camarada Laurindo” nas homenagens do morro quando de sua volta. Ou seja, o Laurindo da canção é um dos muitos comunistas que se alistaram como voluntários na FEB – e o retorno dos pracinhas coincidiu com o período de abertura após o Estado Novo e com o breve período de atuação legal do Partido Comunista na política brasileira (até a cassação dos mandatos e suspensão do registro do partido em 1947).
O jornalista Rui adere ao grupo de soldados por acaso, após contrariar ordem do comandante brasileiro que determinava seu retorno ao país por ser excessivamente crítico. No filme ele é fundamental para ajudar os soldados a entenderem as comunicações em diversas línguas, necessárias para sobreviver no front (inglês, italiano, alemão). A participação deste personagem remete às tensões entre a imprensa e o governo Vargas. Afinal, o Brasil convivia com censura prévia à imprensa e a estatização de jornais de oposição (o caso mais célebre foi O Estado de São Paulo, cujos donos se exilaram na Argentina enquanto o jornal foi encampado pelo governo). Assim, os “heróis” brasileiros na guerra viviam o paradoxo de lutar contra uma ditadura em outro continente enquanto sabiam que retornariam para uma ditadura em sua própria pátria.
O desertor italiano é outro personagem que abre feridas históricas profundas. Depois de conviver com os soldados brasileiros por várias horas, de início quase como prisioneiro, depois como colaborador na missão que o grupo tinha se atribuído, o personagem vivido por Sergio Rubini chama os brasileiros de “soldados de merda”. Por que julgava insana a missão, e despreparado o grupo. E despreparados eram mesmo, os soldados brasileiros, que aprenderam as técnicas militares praticamente no teatro de operações, recebendo transporte, comida, treinamento e equipamentos dos americanos.
O modo como a FEB foi desmobilizada antes do retorno, demonstra o quanto a questão era politicamente sensível no Brasil. Minha colega de mestrado Sirlei de Fatima Nass, em sua dissertação, explica a vilania política cometida por Vargas e pelo ministro de Guerra Eurico Gaspar Dutra. O trecho está a partir da página 54, pdf aqui. A ironia é que Dutra era representante da ala filo-nazista do regime varguista, e o retorno da FEB podia significar um potencial desestabilizador considerável para o regime. Assim, os praças já chegaram ao Brasil desmobilizados, e nunca tiveram sua memória respeitada no país. Que hoje, décadas mais tarde tenha alguém preocupado em revisar essa injustiça nacional é bom sinal para nossa democracia, e o filme de Vicente Ferraz acerta na veia, embora nem todas as questões subliminares possam ser captadas pelo público. Mas eu suspeito que o filme vai dar bom uso em muitas aulas de história.
Apesar de ser um filme de poucos recursos (comparado com a produções holiudianas sobre o tema), Estrada 47 acerta nas escolhas, e faz um filme artisticamente comovente, historicamente confiável e tecnicamente de alto nível. As locações de filmagem são na Itália, na região onde os brasileiros lutaram. As paisagens e cenários são muito bem escolhidos. Os atores são muito bons, aspecto valorizado pela participação de Richard Sammel como o alemão capturado (já conhecido por fazer outros papéis como militar alemão, especialmente o Sargento Rachtmann em Bastardos Inglórios).
A reação do público e da crítica tem sido boa, dentro dos limites do cinema nacional. No Guia da Gazeta o filme é disparado o mais indicado pelo público entre os filmes nacionais. As críticas de imprensa catalogadas pelo site AdoroCinema são injustas com o filme, classificando abaixo do merecido, no meu entender (exceção para o crítico da Folha, que deu nota máxima). A crítica estrangeira parece ter sido mais favorável, segundo se pode perceber no IMDB. O filme foi premiado em alguns festivais importantes (principalmente o de Gramado), e vem bem distribuído pela Europa Filmes.
Estrada 47 ainda está em cartaz, e vale muito a pena ver.
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