Acabou de ser lançado o que deverá ser por muitos anos o melhor estudo sobre a história do Regime Militar brasileiro. O autor, Marcos Napolitano, pode ter uma visão privilegiada do assunto por causa da sua trajetória como pesquisador: começou a carreira acadêmica (mestrado) estudando os movimentos populares do final dos anos 1970 que combateram o Regime Militar; seguiu fazendo o doutorado sobre a Música Popular entre 1959-69, pelo eixo engajamento/indústria cultural; continuou a trajetória pesquisando a cultura da resistência ao Regime nos anos 1970 (Música Popular, cinema e imprensa alternativa).
Com essa trajetória, Napolitano se tornou um historiador privilegiado para abordar a cultura brasileira nos anos em que o país viveu sob os generais. Por isso, nem preciso dizer que o livro tem no seu ponto forte justamente uma visão abrangente da cultura nos anos 1960-70, principalmente seus setores mais dinâmicos: música popular, teatro e cinema. Sob esta ótica, o livro tem dois capítulos muito interessantes, que já vão entrar para as bibliografias de História da Música Brasileira (e do cinema, teatro e cultura em geral) – começando pela minha. “No entanto é preciso cantar: a cultura entre 1964 e 1968” e “A primavera nos dentes: a vida cultural sob o AI-5”. (Abra aqui o sumário completo, do sítio da editora).
Se você abriu o sumário no link acima, você viu que o livro tem uma visão privilegiada sobre a cultura no Regime Militar, até por ser a principal área de trabalho do autor como pesquisador. Mas o livro não é só isso. Tem ainda um capítulo bem importante sobre as “letras em rebeldia” – abordando os escritores e intelectuais (e refletindo sobre porque o governo militar ter ficado tão completamente isolado entre a intelectualidade, que se tornou consensualmente de oposição ao Regime) e com uma interessante visão da imprensa alternativa (a única que se manteve com independência em relação ao Regime – apoiado desde a primeira hora pelos grandes jornais).
Se o que eu achei mais interessante foi o panorama cultural do Regime Militar, o livro tem outras partes mais pedagógicas. Ele é uma visão ampla e bem fundamentada das causas que levaram ao golpe de 1964, com a necessária avaliação do governo Jango (1º capítulo). Essa parte se tornou tanto mais necessária quanto mais o governo Jango foi sendo avaliado de forma bastante parcial, tanto à esquerda (que o considerava vacilante e conivente com a direita) quanto à direita (que passou uma visão de um governo incompetente com um presidente imoral – bêbado e mulherengo). O trabalho de reavaliação deve seus créditos ao livro do Jorge Ferreira (que resenhei aqui para a Gazeta), amplamente usado como referência pelo Napolitano, somado a alguns outros trabalhos de pesquisa documental.
Aliás, esse é o grande mérito do livro do professor da USP. Tem coisas que o Napolitano conhece porque pesquisou direto, como já mencionei acima, e tem coisas que ele mobiliza uma série de estudos acadêmicos profundos e recentes. Ou seja, o livro não é mera opinião sobre o Regime Militar, mas é uma grande recensão do que tem de melhor na pesquisa recente – grande parte em teses e dissertações não publicadas. Ou seja, quando você quiser opinião sobre o Regime, poderá encontrar dezenas de livros já publicados ou que sairão este ano em que o golpe completa meio século. Se você quiser uma síntese abrangente do que a academia tem descoberto a partir da pesquisa documental, vai ter que recorrer sempre ao livro do Napolitano, e isso é o que ele tem de mais fundamental.
Entre o capítulo sobre Jango e o capítulo sobre a cultura 1964-68, tem dois capítulos em que Napolitano reavalia a conjuntura política que levou ao golpe. Primeiro a questão de uma “tradição” golpista já bem arraigada na política brasileira, que remetia aos golpes de 1945 (para tirar Getúlio antes das eleições), de 1954 (que levou ao suicídio de Vargas), de 1955 (que garantiu a posse de JK). Mais do que eleições livres, o ensaio democrático que o Brasil teve entre 1945-64 foi caracterizado por golpes e contragolpes. De modo que os principais atores (especialmente a oligarquia e os “liberais”) não imaginava uma atuação política prescindindo das quarteladas e das viradas de mesa. Isso contrastou com o crescimento vigoroso da atuação das massas urbanas na cena política, algo inaceitável para os setores acostumados a mandar no Brasil desde os tempos do Império. Ou seja, Napolitano analisa o golpe como uma aliança civil/militar contra o reformismo trabalhista, travestida em discurso anti comunista que levou ao absurdo de propagar a ideia de um golpe “saneador” em prol de uma democracia (que evitasse a participação direta das classes populares).
Este tipo de análise se tornou urgente, à medida em que os anos recentes viram um crescimento assustador do revisionismo que propõe que o golpe foi necessário para evitar uma ditadura comunista, fator que se soma ao anti petismo doentio que a gente vê com tanta facilidade em colunistas na imprensa e em opiniões avulsas nas redes sociais. Em relação a isso, o livro tem um capítulo inteiro para discutir a visão de que tenha ocorrido uma fase “liberal” do regime sob Castelo Branco, o que ocorre no capítulo sobre a “ditabranda”. O mesmo tema vem costurado com o capítulo final, onde Napolitano discute a memória do Regime, os problemas da transição para a nossa (parcial) redemocratização e a questão da Comissão da Verdade. (Um pouco dessa discussão já apareceu aqui neste blog, neste post.)
O capítulo sobre os “anos de chumbo” após o AI-5 traz uma necessária revisão da história dos grupos que aderiram à luta armada e uma avaliação do período mais negro da repressão. O fechamento do Regime não vem apresentado como uma “reação” à militância esquerdista, mas como um projeto próprio dos militares, que desde o início do Regime se afastaram dos aliados civis (como Carlos Lacerda, o político que apoiava mais entusiasticamente um golpe contra Jango) para implantar um projeto radical de modernização conservadora. Neste sentido, o autor confronta o discurso de que houvesse qualquer diferença substancial entre alguma “linha dura” dentro dos quartéis que estivesse sabotando e “golpeando por dentro”. A linha dura fazia parte do projeto principal, e levava a conta do serviço sujo, mas sempre esteve submetida à hierarquia pela qual os militares tanto prezam.
Por essa linha vai também a análise do governo Geisel e do período de abertura. Napolitano questiona a noção de que Geisel tenha sido o general que distendeu o Regime, lembrando, por exemplo, que o pior período da censura à imprensa (Estadão e Veja) ocorreu na transição para ou durante o governo Geisel. Do mesmo modo, foi o início do governo Geisel o período que somou o maior número de desaparecidos. Mais ainda, foi o período em que a tortura e as execuções nos porões do Regime se voltaram contra a oposição pacífica. O PCB, partido aliancista que nunca apoiou ou participou da luta armada, foi considerado “culpado” pela vitória do MDB nas eleições legislativas de 1975, e sofreu uma brutal repressão, com o assassinato de todos os seus principais líderes.
O ponto alto do livro, pra mim, é a necessária ligação com uma herança maldita do Regime Militar, que até hoje sustentamos. Por exemplo, os índices assustadores de violência são apontados por Napolitano como uma consequência direta dos vários tipos de violência capitaneada pelo Estado contra seus cidadãos a partir do Regime: a violência policial direta (com a criação da PM que até hoje não foi democratizada) e a violência institucional indireta que foi provocada nos bolsões de pobreza desassistida que foram construídos na periferia dos grandes centros. Sem falar na sempiterna exclusão dos camponeses (trabalhadores rurais) que continuam tratados a bala pela jagunçada impunemente até hoje.
O ponto fraco do livro parece ser o capítulo sobre o milagre econômico. Ali eu senti falta do uso de uma bibliografia mais consistente com os estudos mais recentes dos departamentos e/ou revistas especializadas de economia. Os estudos utilizados por Napolitano vieram concentrados entre a própria produção crítica da intelectualidade de esquerda logo após o Regime, ou dos estudos das áreas de Ciência Política, Sociologia e História. Me parece que a crítica ao milagre ganharia muita substância com os próprios trabalhos dos economistas ortodoxos, afinal, não é apenas sob a ótica da esquerda que o milagre econômico foi desastroso. As consequências de uma economia concentrada, do viés industrialista, do intervencionismo autoritário e da tributação e da burocracia kafkeanas são sentidos até hoje, quando temos dificuldade intensa em nos livrarmos do entulho autoritário que vamos levando por inércia.
E o livro nos dá boas pistas sobre o que seja talvez o principal motivo pelo qual não conseguimos nos livrar dos piores defeitos institucionais e políticos que herdamos do Regime Militar (nossa legislação sobre partidos políticos, por exemplo, feita para que o governo sempre obtenha fácil apoio e seja impossível construir consensos transformadores pela oposição, além de uma notável impermeabilidade a pressões populares).
Napolitano faz uma crítica severa do processo de abertura. Por um lado, houve o projeto da transição controlada, operada por Geisel e Figueiredo, que investiu numa institucionalização estruturante dos projetos dos militares. Mas houve também o problema estratégico das oposições: todo mundo estava tão preocupado em sair do mundo sufocante da repressão e garantir espaços de respiração na política institucional, que os canais oferecidos pelo Regime em seu processo de transição foram aceitos meio sem questionamento. Houve mais preocupação em garantir a possibilidade de se eleger depois que as eleições voltassem a ser livres do que em passar a limpo o período ditatorial. Esse paradoxo se tornou ainda mais agudo à medida em que desde Fernando Henrique Cardoso o Brasil vem sendo governado pelos principais opositores do Regime Militar, e mesmo assim nada avançou na punição aos crimes cometidos nem no estabelecimento da verdade documental sobre o Regime. Praticamente a única reparação que o Brasil fez foi a indenização pecuniária de parte das vítimas do Regime. E é por isso que um movimento como o #DesarquivandoBr é tão necessário (veja também a ótima série de textos sobre o assunto produzidos pelo jurista Pádua Fernandes em seu blog).
Quer dizer, o livro é um grande lançamento, não só por ser uma História do Regime Militar solidamente construída, aproveitando o mote dos 50 anos do golpe de 1964. Mais do que isso, o livro faz uma necessária reflexão política, e coloca o dedo em feridas que estão abertas. 50 anos não é tempo demais pra gente deixar tanta coisa grave sem uma solução definitiva?