Acabei de ler O capital no século XXI, de Thomas Piketty. Está perto de fazer um ano que o livro foi lançado em sua edição brasileira, traduzida do original francês por Monica Baumgarten de Bolle e publicada pela Intrínseca. Ou seja, por critério de atualidade, entra aqui no blog não como “livro recém lançado”, mas vai direto para a categoria “livros clássicos”.
O livro foi escrito com a pretensão de se tornar uma referência em economia política. E acho que atinge fácil o objetivo. As principais qualidades que o colocam no patamar de leitura obrigatória são: a linguagem acessível a leitores não especializados em economia; o amplo diálogo com outras áreas das Ciências Humanas (principalmente História, Sociologia e Ciência Política); a profundidade dos dados utilizados para compor o livro, somada à sabedoria em não encher o livro de tabelas, gráficos e números – os interessados em detalhes podem baixar o anexo técnico no link da editora; a consciência dos limites e do lugar público da economia acadêmica, onde a discussão técnica não pode pretender superar as decisões políticas tomadas de maneira democrática.
Quando lançado em inglês, e ainda em 2014 logo depois da publicação no Brasil, o livro já recebeu muitas resenhas ótimas. Seria desnecessário mais uma, a não ser no meu caso, se eu puder demonstrar a importância da obra como livro de história – foco deste blog.
Se o livro fosse daqueles antigos com títulos longos, que chegavam a ocupar quase uma página inteira, podia ter um assim:
Uma história das desigualdades de estoque de capital, das rendas de capital e das rendas do trabalho na Inglaterra, França e Estados Unidos nos século XIX e XX, com projeções para a desigualdade no século XXI e propostas tributárias para evitar a concentração extrema de riquezas e manter a sustentação financeira do Estado Social criado no pós Segunda Guerra Mundial.
Porque é mais ou menos isso aí que o livro se propõe. O autor evita discutir o assunto para países que não têm dados suficientes ou confiáveis, nem séries suficientemente completas e de longa duração. Assim, a limitação aos três principais países ocidentais é explicada pelos dados disponíveis. Por outro lado, Piketty toma o cuidado de relativizar os números que usa no livro. Segundo o autor, existem inúmeros problemas no cálculo dos dados, de modo que estes devem ser usados como grandezas e proporções aproximadas, que permitem analisar tendências. Mas não podem ser tomados como medidas precisas.
Um livro como esse só foi possível por causa de uma longa tradição de economistas e historiadores franceses, ingleses e norte-americanos que, desde o final do século XIX vêm fazendo pesquisas monumentais para estimar dados de renda, patrimônio, arrecadação fiscal, entre outras informações importantes. Os dados mais recentes usados no livro conseguem ser mais confiáveis devido aos avanços na contabilidade, nos dados públicos e, principalmente, na informática. Vale dizer, Piketty trabalha há décadas com uma rede de dezenas de pesquisadores em vários países do mundo que vêm produzindo uma base de dados sobre desigualdade no mundo.
O principal obstáculo para estudos como o de Piketty, e mesmo para a implantação de um Estado Social de âmbito mundial, capaz de mitigar a pobreza extrema e a desigualdade crescentes (como o autor defende) é a falta de dados e de transparência das informações fiscais produzidas e disponibilizadas pelos governos ao redor do mundo. A justiça social parcamente alcançada nos países centrais e mesmo os dados que permitiram a escrita do livro foram resultado dos esforços fiscais associados à construção do Estado moderno.
De maneira geral, o livro decorre da premissa de que a desigualdade extrema é prejudicial à democracia e à convivência pacífica. Acho difícil discordar, embora isso não seja necessariamente derivado dos dados econômicos que Piketty manuseia. É uma premissa, digamos, moral. Aliás, uma parte muito interessante do livro é justamente a demonstração de como no pós 1945 se construiu na Europa Ocidental e nos EUA um consenso em torno da necessidade de mitigar a desigualdade – o que corresponde ao que se costuma chamar de “anos dourados”, ou “os 30 gloriosos”. O colapso deste consenso ficou evidente por volta de 1980, e desde então existe uma volta da desigualdade em crescimento rápido, chegando hoje aos patamares próximos aos da Belle Epoque, período até hoje mais desigual entre os que se tem medida.
Ênfase no termo “em que se tem medida”. Porque eu acho saudável a preocupação do Piketty em não querer dar palpite sobre coisas que ele não tem dados, mas isso também soa no livro como um outro tipo de premissa: eurocentrismo. A ênfase no que acontece em EUA, Inglaterra e França é por causa dos dados ou é porque são os únicos lugares que o autor considera relevantes para pensar o mundo, ou o único tipo de cultura com a qual ele conseguiu dialogar? Fica difícil separar as coisas, afinal, Piketty gosta de usar outras coisas além da fria base de dados: literatura, por exemplo. Os personagens de Jane Austen ou Balzac, principalmente O pai Goriot – de onde o discurso de Vautrin para Rastignac sai quase como mote para toda a pesquisa de Piketty. Em tal discurso, o personagem reflete sobre a pertinência de buscar a riqueza a partir do trabalho, uma vez que uma vida inteira de dedicação às melhores carreiras existentes no início do século XIX permitiria pouco mais do que uma fração minúscula do que se podia obter da herança conquistada com um casamento adequado.
Vem então a utopia por trás do livro de Piketty, compartilhada entusiasmadamente por este resenhista: um mundo de oportunidades para todos, garantido por um estado social (principalmente educação pública, salário mínimo, aposentadorias, infraestrutura de transportes energia e comunicações) sustentado por impostos progressivos e onde a herança não seja privilegiada em relação ao trabalho e ao empreendedorismo. Ou seja, a definição em si mesma da ideia de social democracia.
Se o título do livro pudesse remeter em algum momento a algum tipo de afinidade com o marxismo ou com o pensamento de Marx, isso fica afastado rapidamente nas primeiras páginas. A obra de Marx fica descartada como carente de qualquer base de dados significativa, e os resultados obtidos por regimes inspirados no marxismo não representam nenhuma simpatia para Piketty.
A preocupação em se desvencilhar de qualquer associação à teoria marxista ou a regimes políticos marxistas é compreensível e salutar. O autor pretende ser respeitado entre os economistas acadêmicos e pretende que suas ideias interfiram na cena pública, afinal, suas propostas de justiça fiscal são factíveis e são uma plataforma política real para o mundo de hoje. Qualquer simpatia com o marxismo poria a perder a validade deste empenho na cena política.
E aí entra a parte mais difícil de engolir como livro de história. Não existe a possibilidade, sabem os historiadores, de abarcar o passado como verdade a partir de dados ou fontes confiáveis. Não existe mais o primado do fato, toda fonte histórica deve ser vista com desconfiança e, o historiador não pode tirar das fontes apenas o que elas dizem mas, principalmente, o que elas não dizem.
Sendo assim, a ausência de dados confiáveis para outros países faz com que Piketty caia no erro de universalizar a experiência histórica de França, Inglaterra e Estados Unidos. Piketty chega a fazer interpretações históricas de longa duração e longo alcance somente com base neste tipo de documentação parcial, e nisso a coisa fica meio frágil. Voltamos a isso mais adiante, pois é preciso entender um pouco mais o argumento histórico de Piketty antes de apontar-lhe falhas ou ausências.
O capital no século XXI traça uma história da economia mundial (tomada como totalidade a partir dos casos específicos de França, Inglaterra e Estados Unidos e extrapolada ou comparada em alguns momentos com casos onde é possível fazer inferência para países como Alemanha, Itália, Suécia, Canadá, Austrália, Argentina) na era contemporânea. Grosso modo, a construção do mundo da Revolução Francesa aos dias atuais. Ou da economia como conhecemos.
Piketty explica, de forma sintetizada para não economistas, os conceitos de renda e de capital, a relação entre as duas variáveis e as formas como isso costuma operar em leis econômicas básicas. Subentende-se aqui o funcionamento de leis econômicas numa economia de mercado como a que existe hoje no mundo. A tentativa de implantar regimes políticos fora dessas premissas é considerada por Piketty como um fracasso completo.
Saio da leitura razoavelmente convencido da existência de algumas “leis” econômicas básicas, que não sei se entendi direito, mas me parecem determinar fatores históricos analisados no livro. Existem as rendas do trabalho e as rendas do capital. Em geral é bem difícil separar as duas coisas, à medida em que no mundo moderno a aplicação de capital exige quantidade razoável de trabalho. Só fica mais fácil demonstrar a diferença à medida em que o estoque de capital aumenta: quanto maior o patrimônio de um sujeito, menor o componente de trabalho na sua renda.
O livro trabalha com o conceito de renda nacional (um pouco diferente de PIB), e calcula proporções desta para os rendimentos do trabalho e do capital. Faz estimativas de quanto da renda nacional fica com cada parcela dos estratos de renda. E de quantos anos de renda nacional correspondem aos estoques de capital.
O livro percebe umas certas constâncias, que pra mim foram muito esclarecedoras. O rendimento do capital tem uma tendência de bastante longo prazo acomodada em torno de 5% ao ano (antes de impostos). O que andou variando muito nos últimos séculos foi o tamanho da renda nacional e das rendas do trabalho.
Com uma renda do capital meio constante na faixa dos 4,5 a 5% anuais, crescimentos da renda nacional menores que este patamar tendem a promover concentração de renda e de estoque de capital. A novidade provocada pelas transformações econômicas do século XX foi um raro momento de alto crescimento da renda nacional provocado por aumento fortíssimo da produtividade conjugada com crescimento demográfico. Acho bem demonstrado no livro que esta conjuntura parece esgotada – ou seja, não veremos no século XXI aumentos de produtividade e crescimento demográfico capazes de equilibrar o crescimento da renda nacional com o rendimento do capital. Resumindo: a perspectiva do funcionamento normal da economia no futuro previsível é de uma natural concentração da renda.
O livro aponta para uma tendência de retorno a níveis de concentração semelhantes aos observados na virada dos séculos XIX e XX. Na chamada Belle Epoque a proporção da concentração de renda era tal que em 1910 a Europa via 90% da propriedade pertencer aos 10% mais ricos da população, enquanto o 1% mais rico ficava com cerca de 50%. Ou seja, a divisão era: 1% mais ricos com 50% da propriedade, os 9% seguintes com 40% e os demais 90% com os 10% que sobraram. Ou seja, nada.
A inovação do século XX foi a criação de uma classe média patrimonial. Hoje a parcela dos que não tem nada nos países ricos é de cerca de 50% (nada em termos de patrimônio, mas uma renda do trabalho e serviços públicos capazes de permitir uma existência minimamente digna). Há um grupo de 40% da população que detêm cerca de 35% da propriedade, os 9% acima ficam com outros 35% e o 1% mais rico acumulam 25%. Esta divisão corresponde mais ou menos à da Europa atual. Nos Estados Unidos há uma diferença significativa, pois o 1% concentra 35% da propriedade e os 40% dividem apenas 25%. A menor desigualdade já observada foi nos países escandinavos da década de 1970, que chegou a distribuir 10% da propriedade para a metade mais pobre da população, 40% para as classes médias e “apenas” 50% para o décimo mais rico (divididos em 20% para o primeiro centésimo e 30% para os 9 restantes).
O nível de desigualdade média atingido na social-democracia escandinava no passado recente já não existe mais. Caminha-se para níveis de concentração crescentes devido à vantagem do rendimento do capital sobre o crescimento da renda nacional. O primeiro parece estável na casa dos 5% anuais, enquanto o crescimento da renda parece difícil de atingir cifras muito maiores que 1% ao ano para países ricos (taxas maiores só seriam factíveis em países que estejam “tirando o atraso”, como a China em décadas recentes).
O raciocínio político de Piketty é que as tentativas de burlar esse funcionamento normal da economia capitalista se mostraram fracassados. A melhor forma de evitar a desigualdade extrema no mundo do século XXI será com a taxação pesada das altas rendas. Economicamente isto é viável e já foi aplicado. Durante os chamados “30 gloriosos”, no imediato pós-guerra, houve um razoável consenso de que a desigualdade era politicamente indesejável. Isso levou a faixas de tributação de renda que chegaram a 90% de alíquota para os mais ricos, como aplicado nos Estados Unidos a partir do governo Roosevelt (a maior alíquota de Imposto de Renda nos EUA manteve uma média de 81% no período 1932-1980, ou seja, só começou a cair no governo Reagan, e hoje está abaixo dos 40%).
O ideário político da época, completamente perdido no tempo, era o de que não seria justo que o peso da fortuna herdada fosse maior que o do trabalho, da inovação e do empreendedorismo. A justificativa que Piketty busca para o século XXI é semelhante: manter o estado social criado na segunda metade do século XX custa caro, e a melhor maneira de financiá-lo é com impostos confiscatórios sobre as altas rendas. Esse tipo de tributação teria o efeito benéfico de favorecer o trabalho e o empreendedorismo, contribuindo para uma sociedade mais justa e uma economia mais dinâmica.
Para todo mundo que não faz parte do 1%, me parece uma plataforma política bastante razoável. Ou seja, não deveria ser nada difícil de implantar, politicamente falando. Mas porque isso não se verifica na prática? Curioso. O livro traz muitas explicações. Os 1% mais ricos estão longe de ser um grupo estatisticamente desprezível. Nos EUA são algo como 3 milhões de pessoas, um grupo numeroso o suficiente para fazer influência decisiva na política, na cultura, na imprensa. Considerando que neste grupo estão o grosso dos políticos norte-americanos, e toda a classe dos executivos, e somando o fato de que os economistas influentes tendem a estar entre o 1% das mais altas remunerações, tem-se o quadro de que as decisões políticas das últimas décadas estão levando ao crescimento acelerado da concentração de renda e de patrimônio.
É muito interessante a visão que Piketty tem da crise europeia. Ele escreveu o livro antes da crise grega chegar à sua fase mais aguda e ganhar a imprensa mundial com a vitória do “não” no plebiscito convocado por Tsipras. Mas a análise de Piketty já previa o desfecho atual: a união monetária europeia tendia ao fracasso por basear-se numa moeda sem Estado, e sem um sistema unificado de arrecadação capaz de tributar as altas rendas. Piketty demonstra que costuma haver 3 formas básicas de resolver problemas de endividamento público: com inflação (fórmula aplicada por muitos países nas décadas de 1930 a 1970), com austeridade (forma aplicada pela Inglaterra do século XIX, que explica a altíssima concentração de patrimônio e provavelmente a derrocada da sua liderança econômica mundial) e com aumento de impostos.
Para Piketty, a austeridade é indiscutivelmente a pior forma dentre as 3. A inflação tem efeitos colaterais muito nocivos, afetando principalmente os idosos – ele lembra que o principal efeito da inflação generalizada de meados do século XX foi a existência uma geração de idosos extremamente pobres depois da guerra na Europa.
A melhor forma seria através de impostos. Mas ele considera a aplicação de um tipo muito específico de imposto: uma tributação confiscatória sobre patrimônio, aplicada de forma temporária. O exemplo seria aplicar um imposto progressivo sobre patrimônio. Para diminuir 20 pontos do endividamento público (de 90% médios para 70% médios do PIB na Europa), bastaria aplicar um imposto confiscatório excepcional em um único ano, isentando patrimônios inferiores a 1 milhão de Euros, aplicando taxa de 10% sobre a faixa de 1 a 5 milhões de Euros e taxa de 20% sobre a parcela dos patrimônios situada em faixas superiores a 5 milhões de Euros.
A aplicação de impostos progressivos sobre a renda e o patrimônio esbarra na necessidade de coordenação de esforços fiscais em nível internacional (idealmente) ou no mínimo em nível europeu (mais factível). Demanda também uma pressão política sobre os paraísos fiscais que concentram hoje grandes fortunas não declaradas possuídas por cidadão de diversos países. O grande problema dos impostos progressivos já aplicados no passado, para Piketty, é que eles não atingiam o grosso dos maiores patrimônios e rendas. Impostos sobre patrimônio tendem a atingir imóveis e contas bancárias, que hoje representam parcela minoritária das grandes fortunas, diluídas em sofisticados investimentos financeiros.
A necessidade de tributar estes investimentos financeiros é demonstrada por Piketty na medida em que a renda média do capital, estável entre 4,5 e 5% num horizonte histórico considerável, tende a aumentar muito quanto mais alto for o capital aplicado. Aí foi muito interessante o método que Piketty aplicou para demonstrar sua suposição – é muito difícil contar com dados para demonstrar estas diferenças de rendimentos (fáceis de intuir). O único caso que serviu para a demonstração no livro, foi o da aplicação dos fundos das universidades norte-americanas. Por exigência legal, as universidades precisam de total transparência na aplicação dos recursos provenientes de doações.
A partir da página 436 o livro apresenta um estudo dos rendimentos das dotações das universidades, apontando que a média de rendimentos obtidos pelos fundos das mais de 800 universidades esteve em 5,2% ao ano entre 1990 e 2010. Mas tomado para as 3 maiores – Harvard, Yale e Princeton, com fundos somados de cerca de 65 bilhões de dólares, o rendimento médio anual foi de 10% para o período. Ou seja, quanto maior o estoque inicial de capital, maior o seu rendimento, por diversos fatores que reduzem o custo de aplicação e favorecem as aplicações mais rentáveis sem risco patrimonial considerável, bem como pela maior possibilidade de contratar serviços caros de gestão de investimentos. Harvard gasta 100 milhões de dólares anuais para pagar seus gestores de fundos, o que significa 0,3% do seu patrimônio – algo muito favorável para quem obtém 10% ao ano de rendimento real líquido. Mas totalmente impraticável para universidades menores, observando-se que a média das dotações das 800 universidades não supera os 500 milhões de dólares.
A parte de teoria econômica do livro, bem como suas propostas políticas para o século XXI são muito interessantes e convincentes. Eu considero O capital no século XXI como um grande manual clássico de social-democracia. Me parece que traz um conjunto de ideias capaz de exercer influência considerável no debate público, como já se percebe na Europa e nos EUA. No Brasil, deveria servir de ponto programático central para qualquer proposta de centro-esquerda.
Mas ainda preciso falar do que considero as deficiências do livro.
Não sei se as propostas de Piketty não têm sua viabilidade comprometida pela parcialidade da sua visão de mundo. A noção de concentração de patrimônio e de renda desenhada no livro é pensada internamente às rendas nacionais para apenas 3 países com algumas relações estabelecidas com um conjunto de não muito mais que uma dezena de outros. Se tomarmos o conjuntos União Europeia, EUA e Japão, teríamos algo como a soma de 13% da população mundial. E quanto porcento da riqueza?
Pensando nos 1% mais ricos que detêm 35% da riqueza dos EUA. Eles são proprietários de qual parcela da riqueza mundial? Resolver desigualdades internas nos países ricos é uma proposta moralmente boa e necessária, mas em que medida isso ajuda a resolver desigualdades em âmbito mundial, quase nada tratadas no livro? Que me lembre, a única perspectiva vislumbrada por Piketty diz respeito à emigração como fator de enriquecimento para populações em continentes miseráveis. Aliás, ele vislumbra a presença de imigrantes pobres como um fator que favorece a aceitação da desigualdade crescente nos EUA – afinal, dos 50% que não possuem patrimônio nenhum, a maioria está vivendo melhor, pois vem de situações de extrema pobreza em outros países.
Depois da crise de 2008, pareceu por um breve período de tempo que as chamadas economias emergentes podiam ser o motor do crescimento mundial e diminuir sua distância para os países centrais. O recente mergulho no abismo de economias como as da Rússia, da China e do Brasil colocaram em cheque esta possibilidade. Os EUA continuam sendo a economia mais dinâmica, e sua liderança na divisão da riqueza provavelmente vai se acentuar, o que potencializa o fato de que são hoje um país em acentuado processo de aceleração da desigualdade.
Piketty simplesmente desconsidera fatores históricos de grande magnitude. Faz total sentido que ele descarte o marxismo e as propostas políticas da esquerda comunista como inviáveis e indesejáveis. É difícil que alguma coisa útil para o futuro saia desta caixa conceitual. Mas desprezar o comunismo como fator histórico no século XX é simplesmente impossível. Piketty considera que a fantástica redução de desigualdade experimentada entre 1910 e 1980 deve-se totalmente à destruição dos patrimônios provocada pela guerra, e às ideias igualitárias que movimentaram o capitalismo ocidental no período de reconstrução. O peso da ameaça revolucionária no período 1910-1950 e da concorrência econômica fornecida pelos países comunistas nas décadas de 1950 e 60 é completamente descartado. Me parece impossível pensar a história dos “30 gloriosos” da Europa sem a ameaça do Pacto de Varsóvia. Os EUA teriam assumido tal nível de liderança militar e tecnológica sem a ameaça Soviética? A reconstrução do Japão teria sido tão bem sucedida se não houvesse o perigo da China comunista? A Coréia do Sul teria desenvolvido tão rápido se não estivesse pressionada pela Coréia do Norte?
Uma história da desigualdade no século XX fica muito “poliana” quando desconsidera as terríveis consequências geopolíticas dos regimes que ameaçaram a estabilidade dos países mais ricos, e a força de movimentos internos que pressionaram por mais igualdade. A desintegração da esquerda comunista após a queda do muro de Berlim teve um efeito político benéfico e desejável. É muito bom que não haja mais possibilidades sérias de implantar a “ditadura do proletariado” como utopia política. Mas a inexistência de uma esquerda com possibilidades eleitorais reais de implantar o tipo de proposta defendida por Piketty é consequência direta da falta de concorrência real para a direita que domina a cena desde os tempos Tatcher-Reagan.
A destruição dos sindicatos praticada na era Reagan abriu caminho para a aceleração da desigualdade vista hoje. A industrialização da China feita por outsourcing de empresas norte-americanas funcionou de maneira complementar. E serve para mostrar como a altíssima desigualdade entre países tende a favorecer a apropriação de riqueza por parcela cada vez menor nos países ricos. Quero dizer, Piketty nem pensa na possibilidade de que a aceleração da interdependência econômica em nível mundial provavelmente tornou impraticável o tipo de “social-democracia em um só país” que ele imagina para a Europa e talvez para os EUA.
Mas a pior ausência no livro é que a questão do custo ambiental deste funcionamento econômico “normal” construído nos dois últimos séculos. A economia industrial só consegue funcionar minimamente apoiada no crescimento contínuo. Piketty vislumbra os problemas econômicos que vão se formando a partir de uma estabilidade (baixo crescimento) que favorece a desigualdade e coloca em risco a paz e a democracia. Um pensamento bem previsível para alguém que nasceu na França e circulou intelectualmente entre França, Inglaterra e EUA.
Mas Piketty praticamente desconsidera os problemas muito mais graves decorrentes da impossibilidade de sustentar o crescimento contínuo com recursos limitados. Sequer considera o tamanho do impacto ambiental decorrente da ampliação da capacidade de consumo da classe média patrimonial. Já vivemos problemas ambientais gravíssimos no Brasil, com uma classe média de cerca de 40 milhões de pessoas (20% da população ao invés dos 40% dos países ricos), pior ainda na China. O que aconteceria se países que chegam tarde na festa conseguissem reproduzir a estrutura social de classes médias patrimoniais do tamanho de 40% da população mundial, com os 50% mais pobres atingindo nível de conforto e consumo francês, alemão, inglês ou norte-americano?
Não existe água, comida, combustíveis ou energia suficientes para sustentar esse tipo de utopia. Quer dizer, imaginar que a economia “normal” dos séculos XIX e XX pode continuar sendo aperfeiçoada soa muito ingênua diante do colapso iminente da civilização como conhecemos. Ou vamos contar com a possibilidade surreal de desigualdade controlada e estabilidade política nos níveis atuais, ou teremos que desenvolver a imaginação política e a capacidade de desenhar mudanças mais radicais nas formas de produção, consumo e distribuição dos recursos. Pra quem está fora do mundo de prosperidade e estabilidade no qual Piketty viveu, sua utopia parece pouco factível.
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