Uma coisa bem difícil é estabelecer o lugar dos compositores na História da Música. Dizem que leis e salsichas são coisas que a gente evitaria consumir se soubesse como são feitas, e eu acho que é bem pertinente incluir aí a reputação histórica dos compositores.
Talvez a gente possa dizer que primeiro um compositor precisa ter sua obra apresentada e obter alguma empatia do público. Some-se os regentes e músicos que decidem incluir as obras nos concertos, os críticos que escrevem sobre música na imprensa, e logo se tem o estabelecimento das reputações. Vêm em seguida os compositores das gerações seguintes, que escolhem os modelos a serem reverenciados, e os professores de conservatório que definem a fixação de um repertório a ser aprendido por novas gerações de músicos.
Depois de todas essas camadas de reputação vêm os livros de História da Música, com seu canon de compositores e obras, seu panteão de gênios a serem venerados como objeto de culto dessa religião que é a “cultura” ou a arte.
Acrescente-se nessa receita a questão geopolítica: países que assumem uma posição central no mundo têm postura privilegiada na hora de disseminar suas visões de passado, embora seja difícil determinar quem é o ovo e quem é a galinha e muito menos saber quem vem primeiro: se um país hegemônico politicamente consegue impor melhor sua visão cultural ou se um país mais aceito culturalmente tem maior facilidade de assumir uma hegemonia política e econômica.
De qualquer modo, não há dúvida que a entrada nos livros de História da Música fica muito mais fácil se um compositor for de sobrenome alemão. Um pouco abaixo na lista das probabilidades vêm os franceses, e descendo mais um degrau vem os italianos. Deixo pra você calcular quantos degraus precisa descer para descobrir as possibilidades de um compositor sinfônico brasileiro colocar seu nome nos livros de História da Música (para a canção e a música pop a coisa muda muito de figura). Especialmente porque até hoje a gente continua no Brasil fazendo orquestras e teatros para tocar o repertório europeu oitocentista, o repertório de ensino de instrumento também tem essa predominância e, se por acaso a gente for ler algum livro de história da música (existem poucos em português), será com certeza um livro traduzido, normalmente do mercado literário anglo-saxão.
Mas porque essa reflexão sobre como se faz história da música e com quais critérios se incluem compositores na lista dos importantes? É que o maestro Osvaldo Colarusso, que faz o blog Falando de música, meu vizinho aqui no portal, escreveu um post fundamental apontando para o fato de que Carlos Gomes tem sido miseravelmente lembrado mais como nome de praça que como compositor.
Eu fui aluno do maestro Colarusso, e tenho a maior estima e admiração pelo trabalho dele. Entretanto, cada vez que um de nós escreve sobre música, acaba saindo alguma discussão no Facebook. Quem não conhece a gente pode achar que estamos brigando, mas não é o caso. Nossas diferenças de opinião sobre a vida musical são bastante marcadas pelas posições que assumimos – ele como regente e profundo conhecedor do repertório e das melhores gravações, eu como historiador, crítico e professor universitário.
Eu bem que concordo com tudo o que o Colarusso escreveu lá, porque realmente é bem estúpido que o Brasil não cultive uma memória cultural digna. Entretanto, quero apontar uma diferença que me parece importante: há o mercado de concertos, formado por músicos, regentes, orquestras, etc, que sempre foi problemático no Brasil e vai ficando cada vez pior, e há o meio acadêmico formado por universidades e centros de pesquisa, que sempre foi problemático mas vem num processo de consolidação crescente.
Nesse esclerosado meio musical que forma o mercado de concertos, tem absoluta razão o maestro Osvaldo Colarusso: Carlos Gomes está injustamente esquecido. Já no precário mas ascendente meio acadêmico, há mais interesse pela obra de Carlos Gomes e por tudo que o músico representa em termos de memória, de patrimônio e de história do nosso país.
Aliás, os livros de História da Música Brasileira sempre deram lugar de destaque para o compositor. Sendo o maior caso de sucesso internacional de compositor brasileiro (que só seria repetido 50 anos depois por Villa-Lobos), era natural que Carlos Gomes fosse visto como herói nacional. Apesar de os modernistas terem defendido a necessidade de superação do modelo operista italiano do século XIX (que foi naturalmente seguido por Carlos Gomes por ser importante em sua época, mas não valia mais como padrão para a geração de Villa-Lobos), não dá pra dizer que eles jogaram o compositor pra escanteio, afinal, o principal livro de História da Música Brasileira produzido por um intelectual modernista foi o 150 anos de música no Brasil, de Luiz Heitor Correa de Azevedo. Publicado pela José Olimpio em 1956, o livro tratava do período 1800-1950, e foi muito influente para as gerações seguintes. Por exemplo, José Maria Neves, que foi professor da UNIRIO por décadas e que escreveu o Música contemporânea brasileira, foi muito influenciado por Luiz Heitor, que o assessorou nas pesquisas em Paris e compôs a banca da teses de doutoramento na Sorbonne que virou livro. Também o História da música no Brasil de Vasco Mariz, surgido pela primeira vez em 1982, era baseado quase que totalmente nas pesquisas de Luiz Heitor, fazendo avançar com o conhecimento pessoal de Vasco Mariz dos compositores e de seus trabalhos para além da década de 1940.
Um jeito interessante de medir a reputação dos compositores nacionais é olhar esses manuais tradicionais e medir a importância dada a cada compositor. Compositores considerados importantes são mencionados em maior espaço. Compositores considerados fundamentais são colocados como espinhas dorsais da história da música pátria, ganhando capítulos individuais. Neste sentido, pode-se ver que a coisa caminha por uma trilha José Maurício – Carlos Gomes – Villa-Lobos, com diferenças na avaliação do que acontece depois de 1940. Luiz Heitor conhecia bem a música de Camargo Guarnieri, e Vasco Mariz foi o primeiro a encontrar valor no trabalho de Guerra Peixe e Claudio Santoro, principalmente após a virada ao nacionalismo folclorista ocorrida por volta de 1948. José Maria Neves foi o primeiro a reconhecer a importância e o valor da experiência dodecafônica do Grupo Música Viva no início da década de 1940.
O fato é que todos estes autores dão a Carlos Gomes um papel histórico central. Não seria por causa deles que o compositor ficaria esquecido.
O problema é que esses manuais saíram de moda. Não tem hoje nenhum autor com disposição de escrever essas grandes sínteses históricas (na verdade hoje estão saindo livros como esses dedicados à música popular brasileira, que os modernistas excluíam como assunto tratável) – ou, se tiver, não tem editora publicando.
Por isso, quem dá aulas de História da Música Brasileira na faculdade de música, como é o meu caso, acaba tendo que optar entre duas soluções que são longe do ideal. A primeira seria continuar adotando Vasco Mariz e José Maria Neves, livros que estão nas bibliotecas e que, no caso do Vasco Mariz, continua sendo editado em novas revisões. A segunda seria dizer aos alunos que não há livro ideal para tratar do assunto em geral, e indicar estudos monográficos sobre temas específicos. O segundo é o caminho mais difícil, mas a resposta mais honesta.
Seguindo por esse rumo, Carlos Gomes é um dos temas que vem sendo bastante estudado na academia, como não poderia deixar de ser. Afinal, para um estudante brasileiro que está procurando temas de pesquisa para iniciação científica, mestrado ou doutorado, fica evidente que há pouco que se possa contribuir de original estudando, por exemplo, a música de Mozart ou Beethoven, tanto pela distância dos documentos disponíveis (que estão na Europa ou nos EUA) quanto pelo fato de que os assuntos da tradição europeia já tem décadas de estudos consolidados com absurdo nível de profundidade. Aí o estudante olha para os compositores brasileiros mencionados nos livros e descobre que sobre eles há um tudo por fazer: aprofundar o conhecimento da biografia, estabelecer catálogos, fazer edições críticas de obras (várias das quais dadas como perdidas ou em manuscritos), fazer estudos analíticos, executar e/ou gravar as obras (muitas das quais inéditas há décadas), avaliar a fortuna crítica na imprensa, descobrir as implicações políticas das atividades desenvolvidas, etc.
Por aí a gente chega a um pequeno mapa dos estudos sobre o compositor, feitos nos departamentos acadêmicos, alguns chegando à edição em livro, outros permanecendo exclusivamente nos volumes encadernados nas bibliotecas ou nos pdf das fabulosas bibliotecas digitais universitárias. Nota-se um certo descompasso entre o que o compositor significa no mundo das orquestras, concertos, revistas vendidas em bancas, lojas de partitura, conservatórios, etc (um circuito que nunca foi tão forte no Brasil e que está minguando a olhos vistos) e o que ele representa nos departamentos universitários que vêm assumindo cada vez mais o papel de produzir e fomentar atividades culturais e musicais.
A principal biografia de Carlos Gomes é sem dúvida a que foi escrita por Lorenzo Mammi para a coleção Folha Explica. (Procurando agora vejo que ele está esgotado, mas ainda aparece no site da coleção.) É um livro bem curto, com uma excelente síntese biográfica baseada nos melhores estudos existentes (o livro foi escrito em 2001) e, principalmente, uma avaliação consistente do papel do compositor. Lorenzo Mammi afirma que Il Guarany foi a primeira tentativa de sintetizar o Brasil em uma obra de concerto, o que o faz atribuir-lhe o peso de obra que inaugura a música brasileira. Mammi faz uma interpretação muito interessante sobre a formação de Carlos Gomes, sua consagração e sua relação com a cultura brasileira de então, levando à superação daquelas interpretações que faziam ver o compositor como um operista italiano de segunda, que o acusavam de não saber orquestrar, ou de não ter aprendido direito o contraponto.
Assim, mais do que um grande melodista, Mammi traz a visão de um compositor bastante moderno para seu tempo, profundamente antenado com a cultura brasileira que estava se formando, e como tendo superado de forma impressionante todas as dificuldades de obter uma formação musical no Brasil do século XIX.
Esse assunto da formação do compositor leva ao estudo de Lenita Nogueira, Maneco músico: pai e mestre de Carlos Gomes, publicado em 1997 em edição do autor (que eu comprei em sebo). Este estudo liga Carlos Gomes à profunda tradição pré monarquia portuguesa, investigada primeiro por Curt Lange e ainda pouco conhecida por nós.
Também sobre a formação do compositor, coisas muito interessantes estão na dissertação de Janaína Girotto da Silva sobre o Conservatório Imperial (pdf aqui). Tratando sobre a formação dos primeiros alunos a receberem medalha do conservatório e ganharem bolsa para estudos na Europa – Henrique Alves de Mesquita e Carlos Gomes, a autora demonstra que ambos aprenderam pouco ou nada no Conservatório, vinham de formação prática principalmente, ou de aulas particulares. Essa autora faz um interessante estudo da correspondência de Carlos Gomes durante seu período de estudo em Milão, e discute muito bem a questão da sua dificuldade com o contraponto.
Aí voltamos ao Lorenzo Mammi, que argumenta que o compositor formou sua linguagem no que havia de mais moderno em meados do século XIX: danças de salão, música militar e modinhas (exatamente o tipo de repertório que os livros de História da Música costumam descartar como de importância menor diante da tradição sinfônica clássica). Ou seja, o contraponto não servia mesmo para o tipo de coisa que o Carlos Gomes queria fazer, e não seria justo cobrar isso dele.
Outro autor que estuda a fundo a questão da técnica composicional do Carlos Gomes, e ajuda a repensar o valor estético da sua produção é o Marcos Pupo Nogueira, que fez sua tese de doutorado sobre os trechos sinfônicos das óperas para demonstrar que Carlos Gomes era um compositor de vocação sinfônica que só conseguia se expressar pela ópera porque era o único tipo de produção que tinha circulação tanto no Brasil como na Itália. Marcos Nogueira demonstra o conhecimento que Carlos Gomes tinha das principais questões estéticas da época, inclusive da música de Verdi e Wagner. Este estudo saiu publicado em livro com o título Muito além do melodrama, e continua em catálogo.
Há também o estudo de Lutero Rodrigues, mencionado no texto de Osvaldo Colarusso, que é resultado de sua tese de doutorado (aqui no sítio da editora). Vale destacar que Lutero Rodrigues é um maestro de fundamental importância para a difusão da música brasileira. Durante seu período como regente da Orquestra de Câmara de Curitiba nos anos 1990 posso dizer que formei todo meu gosto por música brasileira orquestral, completado principalmente pelas gravações em disco da Orquestra de Câmara de Blumenau com regência de Norton Morozowicz. É sintomático que um maestro como Lutero Rodrigues (que também têm trabalhos fundamentais sobre Camargo Guarnieri) tenha transitado do mercado de concertos para a vida acadêmica, atuando há vários anos como professor da UNESP.
O portal de teses da CAPES está fora do ar há várias semanas (suspeito que tenha sido desativado) o que me impede de fazer afirmações sobre teses referentes ao compositor no momento. Uma pesquisa em alguns portais de universidades não me trouxe muita coisa, mas já valeu pela descoberta da vigorosa tese do Marcos Virmond sobre o Condor e o pensamento composicional de Carlos Gomes (defendida em 2007, mas que eu não conhecia) – pode baixar aqui. Ele foi orientando da Lenita Nogueira na UNICAMP.
Falta ainda uma última questão para pensar: qual o lugar dos compositores brasileiros na História da Música de uma maneira mais abrangente? Já debati muito isso com o maestro Osvaldo Colarusso em suas aulas e cursos, quando eu era muito mais nacionalista do que agora e ele me parecia muito mais favorável aos clássicos europeus. Hoje parece que nossas posições são bem mais próximas.
O assunto é bastante complexo, mas acho que posso fazer um resumo grosseiro do que penso: a consagração de compositores e sua reputação histórica fazem parte de amplos processos geopolíticos. (Pode-se dizer que lidei bastante com isso em minhas pesquisas sobre Guerra Peixe e o grupo Música Viva ou Camargo Guarnieri e o modernismo – veja aqui os links para baixar os trabalhos). Ou seja, o lugar de Carlos Gomes na História da Música não é o que poderia ser porque nosso meio acadêmico tem alguma atenção para ele (não o bastante) mas é pouco consolidado. Por outro lado, o mercado de concertos é bem precário no Brasil, e é ligado de maneira doentia aos clássicos europeus. Como quase tudo no Brasil não temos visão estratégica e planejamento geopolítico – por isso continuamos a reboque. Não seria de se esperar que o reconhecimento de nossos compositores viesse de fora do Brasil, mas por ironia foi sempre isso que aconteceu: Carlos Gomes não teria sido o que foi se não fizesse sucesso em Milão, Villa-Lobos seria ninguém se não tivesse sido reconhecido em Paris e Camargo Guarnieri teria morrido de fome no Brasil se não tivesse sido valorizado nos EUA no âmbito da política de Boa Vizinhança.
Tá mais que na hora de o Brasil acordar para essas coisas, mas, como sempre, isso vai depender do trabalho meu e seu, de cada um de nós. Não há como fugir.
P.S.: Completei a pesquisa mais tarde, e as informações adicionais estão aqui:
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