Eu já tinha feito propaganda deste concerto na minha página pessoal, tanto por ser um repertório muito interessante com um ótimo regente convidado, como pelo fato de que eu estava encarregado da palestra pré-concerto.
Agora, faço aqui um comentário sobre o concerto, e aproveito para colocar as anotações que fiz para a palestra. Com a vantagem de que aqui posso colocar links e vídeos.
Sobre o concerto:
A interpretação dirigida por Stefan Geiger confirmou a ótima expectativa que já criamos em torno do seu trabalho, graças às grandes atuações que teve na cidade em anos recentes, como neste concerto.
Geiger programou obras difíceis. O Concerto em ré de Stravinski já esteve no repertório da orquestra, mas as peças de Antheil e Adams eram novidade para os músicos. Conversando com alguns após os concertos, soube o período de ensaios antes da chegada do maestro havia quase que chegado a um impasse. As qualidades de grande ensaiador de Geiger foram reveladas, quando ele dissolveu as complexidades técnicas e colocou os músicos no encontro da música superando as dificuldades de preparação.
O resultado ficou visível para quem foi ao concerto (não tanta gente quanto merecia o programa, infelizmente – tivemos ocupação de cerca de um terço da Capela Santa Maria): as três obras foram executadas com muita energia, deram grande resultado, e revelaram uma interpretação detalhista e ao mesmo tempo empolgante. Geiger demonstrou que sabe empolgar os músicos para um projeto tão difícil. Especialmente o Shaker Loops, chegava a consumir a energia dos músicos a um nível assustador.
Saí dos dois concertos com a certeza de ter visto a nossa Orquestra de Câmara em um de seus grandes momentos, em ótima forma para um conjunto que está comemorando seus 40 anos.
As anotações da minha palestra – um enfoque sobre as obras e os compositores:
Stravinski (1882-1971) – Concerto em Ré (1946)
O concerto foi encomendado em 1946 para a celebração do 20º aniversário da Orquestra de Câmara de Basel (Suíça). Stravinski o compôs em Hollywood, onde morava, entre janeiro e agosto. A estreia foi em 27 de janeiro de 1947.
Basel tinha cerca de 180 mil habitantes em 1950 (não muito diferente da população de hoje), e é um município que funciona como polo de uma região que abrange 3 países, mais de 200 municípios e cerca de 800 mil habitantes atuais. Nesta época, Stravinsky era um dos compositores mais caros para se encomendar uma obra, e dividia com Schoenberg o título de compositor mais importante vivo. Isso me chamou à atenção para comparações com o tamanho de Curitiba e a baixa pretensão de relevância que a gente tem dado pra nossa orquestra.
É uma obra curta, de cerca de 12 minutos, que usa melodias agradáveis e ritmos mais ou menos regulares, tratados em um emaranhado harmônico razoavelmente complexo, talvez politonal. A orquestra de câmara é tratada com vigor, e demonstra força e peso talvez característicos de Stravinsky.
Partitura em gravação podem ser encontrados aqui.
Em relação ao conjunto da obra do compositor, está no período normalmente chamado de neoclássico, um termo muito problemático para abranger tudo o que Stravinsky fez entre Pulcinella (1920) e The Rake’s Progress (1951). O conceito de neoclassicismo talvez faça sentido em contraste com a chamada “fase russa”, de Pássaro de fogo e Sagração da Primavera, diferenciando-se claramente também da opção pela música serial na década de 1950.
George Antheil (1900-1959) – Serenata para orquestra de cordas (1948)
A obra dura cerca de 15 minutos. O segundo movimento talvez seja uma das páginas mais belas da música norte-americana.
Esta obra soa provavelmente muito mais neoclássica que a obra de Stravinsky escrita cerca de um ano antes. Porque Antheil tinha sido um compositor muito ousado na década de 1920, quando viveu e trabalhou na Europa e produziu o Ballet Mecanique. Esta peça foi escrita para o filme conceitual de Fernand Leger e Dudley Murphy, lançado em 1924. A instrumentação da versão final (concluída em 1935) tem 4 pianos, 2 xilofones, tímpano, glockenspiel, percussões “normais”, 2 sirenes elétricas e 2 motores de avião. Feita de repetições insistentes de ritmos frenéticos e acumulação de ruídos, num claro paralelo com a ousada técnica de recorte e montagem das imagens, tornando-se numa das mais ousadas peças musicais escritas na primeira metade do século XX (partitura e gravação desta peça aqui, um vídeo ao final do post).
O terceiro movimento da Serenata chega a ser escandalosamente tonal, de ritmo dançante e orquestração viva e linear. As notas de programa comparam o trecho a uma dança camponesa escrita por Shostakovich, então no auge de seu período realismo socialista.
Partitura não encontrei, mas tem uma gravação da obra aqui.
John Adams (1947) – Shaker Loops (1978/83)
A peça inteira tem cerca de 24 minutos de duração. Foi escrita originalmente para septeto em 1978, e logo em 1983 revisada para uma versão que comportava tanto o septeto como a orquestra de cordas completa. A inspiração inicial para a peça (e para as ideias musicais) foi a dança frenética em êxtase da seita ultra radical dos “shaking quacres” surgida na Inglaterra do século XVIII.
O primeiro movimento – Shaking and trembling começa com um pulso constante surgindo nos violinos, e algumas notas sendo atacadas nas violas e violoncelos, que aos poucos vão somando eventos e acrescentando elementos até descambar num frêmito ritualístico digno dos antigos Quacres. Neste sentido, a peça seria uma versão minimalista de ritual protestante anglo-saxão, mais ou menos paralelo ao ritual pagão que Stravinsky usou para abalar o mundo da música com Sagração da Primavera em 1913.
No final do 1º movimento, um pouco de quietude mística após ser atingido o auge do êxtase físico. Esse caráter mais intimista anuncia a virada que leva ao segundo movimento – Hymning slew, algo como uma brusca mudança de estado, da dança frenética para a contrição e o cântico de hinos.
O terceiro movimento, Loops and verses não tem separação clara, assim como a passagem para o último movimento Final shaking não é identificada pela audição.
A estréia da peça foi em 8 de dezembro de 1978, pelo Conjunto de Música Nova do Conservatório de San Francisco, regido pelo compositor.
Partitura e gravação da obra estão disponíveis aqui.
Sobre os compositores:
John Adams vem ganhando importância, e é considerado um dos maiores compositores do minimalismo norte-americano, ao lado de Terry Riley e Steve Reich. Shaker Loops talvez seja a melhor “obra de entrada” para a linguagem do minimalismo, justamente por equilibrar tão bem a riqueza e o interesse rítmicos com as repetições insistentes que marcam a linguagem (e que às vezes a tornam indesejável para alguns ouvintes). Mas sua obra mais importante parece ser a ópera Nixon in China.
Ele teve sua formação musical toda na Nova Inglaterra, região nordeste dos EUA, onde nasceu e cresceu, e da qual pode ser considerado um herdeiro de sua vigorosa tradição cultural e intelectual. Seu mestrado em Harvard em 1972 consta que tenha sido a primeira vez que uma composição musical foi aceita como tese nos EUA (prática hoje comum). Após a conclusão do curso assumiu o cargo no Conservatório de San Francisco, cujo Conjunto de Música Nova foi a principal ferramenta de trabalho de Adams.
Adams ganhou o prêmio Pulitzer em 2003, e uma de suas últimas obras foi o oratório O evangelho de acordo com a outra Maria, estreado pela Filarmônica de Los Angeles com regência de Gustavo Dudamel.
George Antheil nasceu no interior de New Jersey, de uma família de imigrantes alemães. Seu pai tinha uma sapataria. Em sua autobiografia escrita em 1945, ele conta que era tão fanático por música que sua mãe o mandou para uma chácara, tentando fazer o menino ficar longe do piano. Ele diz que deu um jeito de fazer chegar um, encomendado em uma loja.
Na adolescência ele viajou para a Filadélfia, para ter aulas com Sternberg, um aluno de Liszt. Em 1919 mudou-se para Nova York para estudar com Ernest Bloch. Ali tomou contato com o círculo modernista da cidade, e conseguiu uma patrocinadora que passou a pagar-lhe um salário que o permitiu dedicar-se ao estudo do piano e à composição. Em 1922 ele se mudou para a Europa trabalhando como concertista. Morou em Berlim inicialmente, onde conheceu seu ídolo Stravinsky, que o aconselhou a mudar-se para Paris.
Chegado à cidade em 1923, ele logo se afiliou ao círculo modernista formado por gente como Satie, Ezra Pound, James Joyce, Ernst Hemingway. Foi convidado para realizar o concerto de abertura da temporada do prestigioso Balés Suecos, ocasião para a qual programou as obras que tinha composto nos EUA, como Sonata do avião (Airplane sonata – um vídeo desta obra ao final do post), Sonata Selvagem e Mecanismos. Conta-se que o concerto causou a maior confusão, terminando com gente presa, e que foi o maior escândalo desde a estreia da Sagração da primavera 10 anos antes. Além da satisfação de Antheil com a reação do público, o concerto tinha vários músicos e artistas famosos na plateia, e rendeu elogios de Satie e Milhaud.
No final da década de 1920 ele se mudou novamente para a Alemanha, mas com as dificuldades causadas para a música moderna com a ascensão do nazismo, voltou aos EUA em 1933. Suas obras não foram bem recebidas em Nova York, mas ele se ligou ao círculo modernista capitaneado por Aaron Copland. Em 1936 ele se mudou para Hollywood, tornando-se principalmente um compositor de música para cinema, o que o levou a adotar uma estética composicional bem mais conservadora.
Igor Stravinsky dispensa apresentações. Teve sua formação na Rússia, onde a vida musical era muito desenvolvida desde o século XIX, e se mudou para Paris, onde trabalhou principalmente para a companhia Os balés russos de Diaghilev. Fez várias obras importantes e reconhecidas, mas provavelmente sua Sagração da primavera, estreada com escândalo em 1913, tenha sido a obra mais influente de todos os tempos.
Com Pulcinella, em 1920, deu uma guinada para uma linguagem mais conservadora, o que lhe valeu a pecha de neoclássico, e o desprezo de teóricos como Schoenberg e Adorno. Apesar de não ter feito mais nenhuma obra que causasse tanta ruptura como a Sagração, continuou produzindo obras ousadas e muito marcantes. As saídas que encontrou para a crise da tradição musical do século XIX foram de grande influência para muitos compositores do século XX – mergulho na tradição musical pré-moderna do leste europeu, uma volta irônica aos clássicos do passado, pesquisa e utilização da música popular norte-americana em linguagem modernista (ragtime), uso consistente do ritmo, o uso do que Paul Griffiths chamou de “tonalismo entre aspas” – expressão que pode incluir também a solução do politonalismo, muito empregada por ele.
O vídeo do Ballet Mechanique de Antheil está no endereço abaixo:
www.youtube.com/watch?v=ZTdlnE4Vy2c
O vídeo de Airplane sonata de Antheil está no endereço abaixo:
www.youtube.com/watch?v=J4on2sedCNg
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