Entre os dias 18 e 21 de março foi realizado em Campinas o 2º Festival de Música Contemporânea Brasileira. O evento foi organizado pela produtora Sintonize, com direção artística de Thaís Nicolau, uma comissão científica constituída de notáveis, financiamento da CAPES, parceria com o Instituto de Artes da UNICAMP, SESC-Campinas e Orquestra Municipal de Campinas. Assim como na primeira edição, o evento manteve o formato de ter dois compositores como tema: Edino Krieger e Gilberto Mendes. As comunicações de trabalhos acadêmicos, as mesas-redondas, as palestras, o bate-papo, os concertos comentados e os concertos foram todos concentrados na obra destes dois compositores.
O formato do festival é bastante interessante, pois quem participa do evento tem a grande oportunidade de conviver com os compositores durante toda a programação. No caso de Edino Krieger e Gilberto Mendes, ambos valorizam muito esta experiência: são cordatos, gentis, gostam de compartilhar suas experiências, conversam como todo mundo interessado em algum aspecto de suas carreiras ou suas obras, e têm uma humildade espantosa em se tratando de gente da importância de ambos para o cenário da música mundial. Não corre o menor risco de errar quem disser que o 2º FMCB tematizou os dois compositores vivos mais importantes do Brasil. E também não é exagero afirmar que sua importância extrapola a abrangência local e atinge foro mundial.
Assim, quem conseguiu ir a Campinas nestes dias assistiu uma programação com mais de 10 concertos e várias comunicações dos trabalhos acadêmicos mais atuais sobre a obra dos dois compositores. Ou seja, teve uma visão (ou audição) privilegiada de parcelas significativas da produção destes dois gigantes.
Seria impossível escrever sobre o festival em um único post de blog. De modo que ao final coloco alguns links com textos de meu blog pessoal, no qual fiz comentários mais pontuais de algumas partes do evento. Aqui pretendo fazer um balanço geral e uma avaliação do que foi mais marcante.
Em primeiro lugar, saímos marcados pela espontaneidade com que Gilberto Mendes e Edino Krieger expuseram detalhes de seu pensamento musical e de suas influências. No primeiro dia ocorreu um concerto no SESC Campinas, seguido de bate papo com os compositores, onde eles se mostraram muito à vontade. Edino Krieger falou da importância de seu estudo com Koellreutter na década de 1940, do interesse despertado inicialmente pela obra de Paul Hindemith, e do posterior contato com a obra de Penderecki, que o levou a uma reviravolta em sua técnica composicional no final da década de 1960. Comentou um pouco sobre a disputa de posições em torno da Carta aberta de Camargo Guarnieri, e contou da amizade com o compositor na década de 1950.
Gilberto Mendes relatou a dificuldade em estudar música em Santos nas décadas de 1940 e 1950. Falou da admiração pelos clássicos europeus (no primeiro dia insistiu na escola francesa e russa, mas no outro dia falou que gostava mesmo de Schumann e Brahms), do impacto dos modernos como Stravinski, Villa-Lobos (o grande modelo composicional) e Bártok (em lugar separado de todos os demais músicos). Falou da frustração em não ter conseguido estudar com Koellreutter nem com Guarnieri, e da importância de ter estudado com Santoro, embora em tempos de sua fase nacionalista.
No jantar eu perguntei a Gilberto Mendes se ele também não tinha influência de Penderecki, que tivesse levado e certas técnicas de escrita, por exemplo, em Santos football music. A resposta foi: “Não! Penderecki era muito sério, muito trágico. Minha música era uma grande brincadeira.”
As comunicações foram realizadas nas manhãs de quinta (19) e sexta (20), e eu não consegui assistir todas, devido à grande dificuldade de deslocamento em Campinas, afinal a hospedagem era no centro, e a UNICAMP em Barão Geraldo, e o sistema de transporte da cidade é todo feito para carros (o que significa que não anda).
Das comunicações que assisti, destaque para o panorama da obra violonística de Edino Krieger feita por Thiago Kreutz, o trabalho de preparação digital do que eram os “tapes” das obras eletroacústicas de Gilberto Mendes feito por Denise Garcia e Clayton Mendes (o que favorece muito novas execuções destas obras de difícil realização) e a análise da poética de Gilberto Mendes feita por Teresinha Prada. Meu comentário é injusto porque perdi os trabalhos que começavam mais cedo, e acredito que vários deles foram muito interessantes.
Tivemos também as mesas redondas. Na quinta (19) com o tema “Edino Krieger: brasilidade e diversidade composicional” e na sexta (20) com o tema “Gilberto Mendes: do moderno ao pós-moderno”.
A mesa de quinta eu participei junto com João Guilherme Ripper e Achille Picchi. Fiz um panorama histórico da questão da brasilidade e diversidade composicional no Brasil e como vários compositores viveram esses dilemas, terminando com o novo modo como Edino Kriger posicionou a questão a partir da década de 1950, não apenas como compositor, mas também como crítico musical e produtor cultural. João Guilherme Ripper deu um testemunho pessoal da enorme influência que Edino Krieger exerceu sobre sua geração, como exemplo de vida e compositor capaz de superar as dicotomias mais rasas entre nacional e universal, entre o criador artístico e o homem de ação em instituições. Achille Picchi fez uma grande reflexão sobre o problema estético da música brasileira e o modo como Edino Krieger viabilizou uma solução criativa com sua poética. Terminada a mesa o compositor foi nos interpelar de maneira bem-humorada, dizendo que gostaria de conhecer “esse homem de quem vocês falaram”. Eu respondi-lhe dizendo que ele é pra nós um mito, apesar de se comportar como se fosse de carne e osso.
Na mesa de sexta, Carla Delgado de Souza trouxe uma reflexão partindo das Ciências Humanas, abrodando os conceitos de moderno e pós-moderno e como Gilberto Mendes provocou tantas rupturas em relação a isso no Brasil. Trouxe a definição dada pelo próprio compositor: “sou trans moderno”. Antonio Eduardo Santos e Flo Menezes trouxeram também os testemunhos pessoais de músicos e compositores impactados pela presença de Gilberto Mendes e a forma como ele foi significativo em sua formação e em suas carreiras.
Depois do almoço voltávamos para uma palestra. Na quinta (19) Ermelinda Azevedo Paz sintetizou suas pesquisas sobre Edino Krieger, que resultaram no livro em 2 volumes que é hoje a referência incontornável sobre o compositor. Na sexta (20) José Augusto Mannis editou uma fala gravada de um depoimento de Gilberto Mendes intercalando com extratos de suas obras. Ficou melhor do que poderia ter sido uma palestra tradicional.
Após as palestras, aconteceram os recitais comentados. Ouvimos grupos e/ou solistas apresentando uma seleção de obras dos compositores, e logo em seguida à apresentação de cada obra, ouvimos os comentários do compositor, presente no palco. Ali tivemos grandes indicações dos processos de criação e dos contextos em que as obras foram encomendadas ou estreadas, e mesmo valiosas dicas sobre o valor emocional destas obras para o próprio compositor.
Na quinta (19) o recital comentado foi dedicado a Edino Krieger. Começou com 3 miniaturas (1947) para flauta e piano, apresentadas por Brielle Frost e Thais Nicolau. Obra da fase dodecafônica, quando Edino Krieger era um jovem aprendiz de composição estudando com Koellreutter (tinha 19 anos então). Estas obras fazem parte de um dos períodos mais ricos e dinâmicos da composição no Brasil, quando um grupo de compositores adotou o mesmo princípio de exercitar uma criação mais abstracionista, ao mesmo tempo dialogando de forma intensa com o imaginário musical que o país já tinha construído até então. São sempre obras para pequenos conjuntos, sem dificuldades técnicas extremas, de modo a viablizar a execução pelos próprios integrantes do Grupo Música Viva na época. Hoje formam algumas das pérolas do repertório camerístico brasileiro – mostrando como a música dodecafônica pode ser singela, poética e agradável. Talvez estas peças de Edino Krieger estejam entre as mais felizes experiências da época.
Depois foi apresentado o Quarteto de cordas nº 1 (1955), por um conjunto formado por Esdras Rodrigues e Luiz Amato (violinos), Emerson de Biaggi (viola) e Lars Hoef (violoncelo). Parêntese: estou listando os músicos conforme o programa impresso, mas lembro que em um dos concertos teve um músico que foi substituído. Como não anotei no momento a informação anunciada no microfone, estou agora cometendo alguma injustiça que não saberei informar. Este quarteto foi concluído por Edino Krieger em Londres, quando estava como bolsista do Britisch Council, estudando com Lenox Berkeley. É uma obra neoclássica, muito bem escrita, explorando bastante os efeitos rítmicos. Talvez seja a obra mais equilibrada e bem escrita do repertório nacional para quarteto de cordas – o que a torna quase obrigatória nos portfólios dos conjuntos com esta formação no Brasil.
Ouvimos ainda a Brasiliana (1960) para viola e piano, com Emerson de Biaggi e Mauricy Martin, Sonâncias II (1975) para violino e piano, com Luiz Amato e Achille Picchi e o Trio Tocata (2011) interpretado por Esdras Rodrigues (violino), Lars Hoef (violoncelo) e Achille Picchi (piano).
Sonâncias II talvez tenha sido a obra mais impactante de todo o festival. Extremamente ousada, executada de forma brilhante pelos intérpretes, representa Edino Krieger em sua grande fase, conjugando maturidade estética, segurança técnica e posicionamento avançado em termos de atualização universal. E o Trio Tocata é uma das obras mais recentes do compositor, num período em que procurou consolidar toda sua experiência, sem medo de usar técnicas neoclássicas, mas sem desprezar o experimentalismo realizado em anos anteriores e os ganhos trazidos. Esta obra foi encomendada por um trio europeu (holandês, se não me equivoco), com o indicativo de que usasse tema musical representativo do Brasil. Edino Krieger escolheu um delicioso baião, quase como se fosse um Egberto Gismonti ou Hermeto Pascoal, soando meio jazz brasileiro, obviamente incrementado pela escrita camerística magistral que Edino domina como ninguém. Ter Achille Picchi ao piano deu um brilho especial a esta peça, porque o professor tocou com muita garra, perfeição técnica, ritmo exuberante e sonoridade cheia.
Na sexta (20) tivemos o recital comentado com obras de Gilberto Mendes. As obras foram bem escolhidas e muito bem tocadas, mas o melhor de tudo foram os impagáveis comentários do compositor. Com 92 anos, talvez não haja outro compositor no Brasil que esbanje tanta vitalidade artística, e seu compromisso com o futuro e com o novo são realmente contagiantes. Blirium C9 (1965) é uma não-obra, no dizer do próprio compositor. Porque corresponde apenas a instruções que levam o instrumentista a improvisar com elementos aleatórios. Assistimos uma interpretação de Fernando Hashimoto com vibrafone e tape (e mais tarde a mesma obra, mas na verdade outra completamente diferente, foi executada por Teresinha Prada em violão e tape). Gilberto Mendes nos confessa que com esta obra matou a curiosidade que tinha de fazer música aleatória, e que nunca mais fez este tipo de composição. Embora esta informação possa ser imparcial, pois o uso de certa aleatoriedade continuou presente em muita coisa do compositor. Também contou que o nome da peça foi obtido trocando as letras de um remédio que ele tomava por causa do pânico de viajar de avião.
Meu amigo Koellreutter (1984) foi executada por Ana Carolina Sacco (voz), Fernando Hashimoto (marimba) e Thais Nicolau (piano). Bela homenagem de Gilberto Mendes a Koellreutter, encomendada para as homenagens aos 70 anos do professor alemão que tanto impactou a música brasileira. Urubuqueçaba (2003) executada por Brielle Frost (flauta) e Thais Nicolau (piano) é uma obra bem neoclássica, usando ritmos de música popular brasileira e uma harmonia jazzística ou bossanovística.
Após os recitais comentados, o dia terminava com apresentações artísticas, que funcionaram em modalidade semelhante à das comunicações de trabalhos realizadas pela manhã. O que ouvimos nesta parte foram os grupos que se inscreveram para apresentações artísticas no evento, e a seleção foi feita pela comissão científica. Tivemos então um panorama das obras dos dois compositores sob a visão dos músicos ou grupos musicais que estão fazendo a necessária conjugação entre produção musical e reflexão acadêmica dentro das universidades. Vale notar que esse é um direcionamento da CAPES para as áreas de Artes – fazendo equiparar a importância das produções bibliográfica e artística.
Na quinta (19) assistimos apresentações de obras de Edino Krieger, mas algumas obras de Gilberto Mendes foram também intercaladas nestes recitais. O primeiro concerto teve obras para percussão executadas por Rubens de Oliviera – Quasi un Rondó para vibrafone (1995), de Gilberto Mendes e Variações carnavalescas para marimba (2004), de Edino Krieger. Seguiu o recital de Thiago Kreutz com a obra completa para violão solo de Edino Krieger, a respeito do qual fiz um comentário mais detalhado em outro post. Tivemos também a apresentação de Ingrid Barancoski, com estudos para piano dos dois compositores: Etude de sinthèse (2004) de Gilberto Mendes, Estudos intervalares de Edino Krieger (Das terças, de 2001, e Das sétimas e Das oitavas, de 2013) e Estudo magno (1992) de Gilberto Mendes.
Finalizando o dia de quinta-feira, o Duo Cancionâncias apresentou obras de Edino Krieger para canto e violão. Foi o grupo musical que mais me impressionou no Festival. Acho que foi o único momento em que os intérpretes chamaram a atenção tanto quanto a obra. Primeiro porque houve aí um trabalho criativo sobre as peças, uma vez que foram escritas originalmente para voz e piano, e ouvimos transcrições para voz e violão de Cyro Delvizio. Quem é violonista sabe as dificuldades técnicas de se transcrever música de piano, dado que o violão tem limitações de tessitura e quantidade de notas e combinações possíveis entre elas, que tornam o instrumento mais restrito que o piano. Transcrever já é difícil, tocar as peças pior ainda. Não sei como, mas Cyro Delvizio realizou isso de forma brilhante – pareceu que não tirou nenhuma nota, e sabe-se lá que malabarismos conseguiu com aqueles dedos para que tudo estivesse ali: contraponto, harmonia, ritmos sobrepostos. Manuelai Camargo deu também uma interpretação muito convincente encarnando de tal forma a persona de cada canção que nos levou para dentro dos universos imaginados pelos poetas e traduzidos em música por Edino Krieger. As canções executadas foram Balada do desesperado (1954) de Edino Krieger sobre poesia de Castro Alves, Desafio (1955), sobre poesia de Manuel Bandeira e Três sonetos de Drummond, sobre obras de publicação póstuma do poeta (Os poderes infernais, Carta e Legado). O repertório de canções construídas pelos compositores modernistas brasileiros, sobre os nossos grandes poetas representa uma das coisas mais interessantes da cultura brasileira, e acho que podemos dizer que essas peças de Edino Krieger estão entre as melhores desse repertório – valorizadas e muito pelas transcrições de Cyro Delvizio e pela realização do Duo Cancionâncias.
O último ciclo de apresentações artísticas foi na sexta (20), no final da tarde. O que talvez fosse o ponto alto do Festival – o concerto do Grupo PIAP tocando Concerto para tímpanos, caixa militar e percussões (1991) de Gilberto Mendes, não aconteceu. Parece que a ida do grupo dependia de algum financiamento, provavelmente da UNESP ou outra instituição de fomento, e a verba não foi conseguida, inviabilizando o transporte do grupo e dos instrumentos. Foi lamentável. Também não tivemos a apresentação, prevista no programa, de Beatriz Alessio.
Ficamos então apenas com dois recitais: de Teresinha Prada com obras para violão de Gilberto Mendes e de Sabrina Schulz com dois estudos para piano. Dois ótimos recitas, com obras muito bem executadas, e não deixaram a gente lamentar tanto as ausências do dia.
Depois disso, a programação do Festival deixou um buraco no dia de sábado (durante o qual escrevi parte dos textos que estou publicando sobre o evento) – serviu para o necessário descanso depois de uma programação tão intensa, mas também deve ter servido para muita gente ir embora, coisa que eu quase fiz. Na verdade eu já estava com as passagens aéreas, então tinha de ficar. No entanto, o concerto de sábado à noite, realizado pela Orquestra Sinfônica Municipal de Campinas, regida por Victor Hugo Toro, fez valer a espera. Depois de grande quantidade de apresentações solo ou em grupos camerísticos, ouvir obras sinfônicas dos compositores foi muito interessante. Aliás, é sempre mais fácil montar pequenos grupos para executar obras, e os compositores brasileiros acabam meio esquecidos na programação das nossas poucas orquestras, apesar de termos um repertório sinfônico brasileiro muito significativo. O concerto de encerramento também mereceu um texto à parte.
Acredito que o Festival de Música Contemporânea Brasileira deve continuar. Assim esperamos. A equipe da Sintonize, que fez o ótimo trabalho de organização, já deve ter entregado os relatórios para as agências de fomento. Talvez nem tiveram tempo de descansar e já estão começando a organizar o próximo. O que já nos deixa curiosos. O espaço para a música contemporânea brasileira é pequeno, mas essa é uma área estratégica, pelo potencial de inovação que ela carrega. Por isso esse evento já marca seu lugar no circuito de eventos acadêmicos e musicais.
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