Para escrever este segundo artigo sobre política educacional aos leitores da Gazeta do Povo, tive que superar uma dúvida importante: explicaria primeiro, em artigos individuais, cada um dos quatro elementos estruturantes de uma política educacional que se pretende eficaz – currículo, livros didáticos, avaliação e formação docente –, ou iniciaria com uma explanação sobre por que esses componentes não apenas ainda estão ausentes do cenário educacional brasileiro (só aparecendo em esparcíssimas exceções), mas também e pior, por que são descaradamente rechaçados por quem milita no setor. Escolhi a segunda opção.
No primeiro lugar da curta lista de dois aspectos principais que impedem nossa evolução educacional está algo fácil de entender e sobre o qual direita e esquerda inescapavelmente concordam: nossa sociedade, até o presente momento, jamais se preocupou com a educação da população (ver capítulo 1 da minha tese).
A diferença – importante, reconheço – entre tempos passados e o presente é que já houve atenção e ação para o bem educar dos membros de nossa elite econômica e (em razão disso) política. Grandes e doutos juristas, professores – mesmo no nível da educação básica –, empreendedores, jornalistas, escritores, que não nos vexariam em nenhum contexto internacional, nos deixaram a impressão e o sossego moral de que não estivemos dormindo no ponto da estrada educacional. Mas acontece que dormimos “rudes”. Muito mesmo. Tanto, que até a nossa elite agora passa vergonha quando vai se expor fora de nosso ninho tropical de Pasárgada. Esse hibernar diante dos desafios de construir um conjunto de políticas educacionais competentes nos legou uma terra ao mesmo tempo arrasada para instruir a população e fértil para deseducá-la: a ideologia marxista nas salas de aula em todas as modalidades de nosso esforço conjunto para formar as próximas gerações. Este é o segundo item de nosso rol binômico de condicionantes do descalabro educacional vigente, do qual só nos demos conta a partir dos resultados do Pisa desde 2000.
A dominação ideológica de características marxistas em sala de aula não é mais doutrinação, pois a etapa inicial de conquista sistemática de corações e mentes já foi vencida pela esquerda. Durante meus primeiros 20 anos de carreira educacional, eu julgava episódios paulofreiristas como anedóticos, casuais e pontuais, mas quando comecei a analisá-los melhor, percebi que o setor educacional - público e privado - era um território há muito conquistado pelas forças intelectuais e culturais que desejam tomar o poder (na educação e seguir além, óbvio).
Esse hibernar diante dos desafios de construir um conjunto de políticas educacionais competentes nos legou uma terra ao mesmo tempo arrasada para instruir a população e fértil para deseducá-la
Para quem não gosta de analogias de exército e guerra em textos de educação, deixo-os para um momento de reflexão com Paulo Freire, em “The Politics of Education: Cultura, Poder e Libertação, de 1985*” – livro que lançou sua fama nos Estados Unidos.
[Che] Guevara não criou dicotomias entre métodos, conteúdos e objetivos de seus projetos. Apesar dos riscos para a vida dele e de seus companheiros, ele justificou a a luta dos guerrilheiros como uma introdução à liberdade, como um chamado à vida daqueles que são os mortos-vivos. [...] Ele sonhava com um novo homem nascendo na experiência da libertação. Nesse sentido, Guevara encarnou a autêntica utopia revolucionária. Ele foi um dos grandes profetas dos silenciosos do Terceiro Mundo. Conversando com muitos deles, ele falou em nome de todos eles.
Resumindo: nós te matamos porque nós te amamos, camaradas. É só para libertá-los de sua existência servil. E quando os libertamos para a utopia, com um tiro no meio da testa, podemos falar em seu nome, seus ignorantes! Diz o generoso profeta Che Gevara, segundo o ídolo educacional Paulo Freire.
É esse tipo de mentalidade tirânica despudorada que constatamos em sala de aula hoje. Ensinar? Heresia! Vamos libertar vocês da ignorância, alunos oprimidos, tornando-os cidadãos críticos. Mas críticos só daquilo que nós, os doutos revolucionários, acharmos bons alvos para censura ou desgosto. Talkey?
Tenho que confessar que substimei a força e a intenção desse poderio ideológico institucional, para fazer avançar interesses partidários (que servem apenas ATÉ chegar ao topo, depois, a pluralidade de agremiações ideológicas não é mais necessária) e controlar mentes e emoções. Até eu chegar ao mestrado, achava que só maluco acreditava nessas baboseiras, porque não tinha percebido que já eram a crença e a prática dominantes, mesmo dentro de uma universidade pontifícia. Já no processo de seleção, tive que engolir uma bibliografia tosca que servia aos acadêmicos que detém o poder institucional, os de guardiões do processo revolucionário, o qual – repito – já se deu em nossas universidades, escolas de educação básica, livros didáticos, concursos de admissão ao magistério, processos de avaliação de alunos e tudo o mais onde se exerce o poder educacional.
Assim, não é preciso currículo – instrumento opressor de selecionar o que deve ser ensinado, por meio de lista lógica, clara e hierárquica de objetivos de aprendizagem conciliados com a sociedade, alunos e seus pais –, porque o conhecimento escolar é tido como “uma representação da cultura dominante”. Sem currículo, para quê livros didáticos, monitoramento do aprendizado e formação para a didática? Docentes só estão em sala de aula para tomar o poder – e entregá-lo a alguém.
Agora, depois de o leite francamente derramado, a pergunta estratégica que temos de nos fazer é: como é que saímos dessa armadilha? Como retomamos o território educacional, não apenas para garantir a pluralidade ideológica, mas para oferecer ensino real, instrução concreta, conteúdos com solidez teórica e metodológica, além de prover experiências pedagógicas em ambiente de convivência civilizada entre pessoas com diferentes pontos de vista? Isso é o que vou tentar responder nos próximos artigos.
Voltando à descrição do abacaxi que teremos que descascar, resumo com o seguinte: semeia-se permanentemente o caos para facilitar o domínio de todos os espaços institucionais, de maneira a atingir o propósito desejado, o qual não tem nenhuma relação com os fins que inocentemente desejamos para a educação escolar. Prosperidade econômica, capacidade cidadã, desenvolvimento do potencial individual e coesão social não estavam no radar de quem articulou o Plano Nacional de Educação, a Base Nacional Comum Curricular, o Novo Fundeb e o projeto de Sistema Nacional de Educação – normativas que constituem instrumentos para outorgar poder a um determinado grupo que manobra mentes e almas em nossa sociedade .
Para finalizar a apresentação dessa incômoda realidade, presenteio vocês com o seguinte trecho sobre alfabetização – mais um componente essencial da educação (social, pessoal e economicamente) efetiva – que não está presente em nossas salas de aula, porque os discípulos do senhor Paulo Freire e demais marxistas, assim determinaram (Educação e Política, 1992):
A compreensão dos limites da prática educativa demanda indiscutivelmente a claridade política dos educadores com relação a seu projeto. Demanda que o educador assuma a politicidade de sua prática. Não basta dizer que a educação é um ato político assim como não basta dizer que o ato político é também educativo. É preciso assumir realmente a politicidade da educação. Não posso pensar-me progressista se entendo o espaço da escola como algo meio neutro, com pouco ou quase nada a ver com a luta de classes, em que os alunos são vistos apenas como aprendizes de certos objetos de conhecimento aos quais empresto um poder mágico. Não posso reconhecer os limites da prática educativo-política em que me envolvo se não sei, se não estou claro em face de a favor de quem pratico.
[…]
A compreensão crítica dos limites da prática tem que ver com o problema do poder, que é de classe e tem que ver, por isso mesmo, com a questão da luta e do conflito de classes. Compreender o nível em que se acha a luta de classes em uma dada sociedade é indispensável à demarcação dos espaços, dos conteúdos da educação, do historicamente possível, portanto, dos limites da prática político-educativa.
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