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Já sabemos que no contexto da educação escolar e domiciliar brasileira encontraremos erudição e padrões de expectativas próximos de países desenvolvidos ou em pleno desenvolvimento apenas como exceção. Como não temos um currículo formal não construímos uma cultura geral nacional (e nem de classe social) sobre o que seria essencial a ser transmitido de uma geração para a seguinte.
Como já afirmei várias vezes aqui, nem as famílias abastadas, a não ser, como disse, como rara fuga às regras culturais e sociais vigentes, realmente se preocupam e investem na formação de um acervo intelectual vasto ou, pelo menos, relevante. Apenas algumas famílias ou pais, por razões variadas, como, por exemplo, terem sido expostos a outros contextos na vida adulta, ou terem sido criados nos raros ambientes mais letrados que ainda subexistem por aqui, escandalizam-se com o pouco que aprendem seus filhos. Dessas, algumas em número ainda mais escasso, resolvem fazer algo a respeito.
Há inúmeras listas literárias célebres feitas por acadêmicos e escritores famosos e é sempre bom conhecê-las.
Mas nos últimos anos comecei a perceber que a preocupação com o que os filhos aprendem tornou-se assunto mais comentado. Tenho a impressão de que alguns catalizadores recentes ajudam a explicar esse fenômeno novo e, de certa forma, alvissareiro: os movimentos ditos conservadores, o movimento “Escola sem Partido” que denunciou de maneira explicita e veemente a doutrinação em sala de aula, a atuação do presidente Bolsonaro que, antes de ser eleito ao cargo mais importante do Poder Executivo militava sobre essa questão e o filósofo e professor Olavo de Carvalho, que martelou a necessidade de ler obras seminais de nossa cultura nas cabeças de milhares de alunos. Cada um chamou atenção para um aspecto diferente da pobreza intelectual dos brasileiros. A pandemia foi a cereja desse bolo, porque transformou, da noite para o dia, pais em professores, escancarando de vez o caráter rarefeito dos conteúdos escolares de nossas escolas.
Obviamente, não são apenas os pais de “direita” ou ditos “conservadores” que se preocupam com o que os filhos leem. Vá até uma livraria da moda em um fim de semana e verá que estarão lá muitos pais “progressistas” comprando as versões mais simpáticas da vida da Frida Kahlo, da Malala ou de livros premiados em fóruns variados. O que parece estar mudando é o começo de uma retomada da curiosidade e da necessidade de conhecer obras ditas clássicas, aquelas que sobreviveram a algumas gerações de leitores.
Como não temos um currículo formal não construímos uma cultura geral nacional sobre o que seria essencial a ser transmitido de uma geração para a seguinte.
Há inúmeras listas literárias célebres feitas por acadêmicos e escritores famosos e é sempre bom conhecê-las, mas hoje eu gostaria de chamar atenção para critérios que lhes permitam fazer sua própria lista, em âmbito escolar ou familiar, porque ajudam a definir quais são as obras particularmente importantes para serem lidas, estudadas e bem compreendidas, com o objetivo de formar uma cultura geral MÍNIMA – razão pela qual as obras devem ter resistido ao teste intergeracional.
O mundo ocidental todo pauta uma série de visões de mundo, argumentações, ações de marketing, de cultura e arte com base no que foi produzido em outras eras, por isso é importante que possamos conhecê-las a fundo, de preferência a partir do ambiente escolar no qual a colegância e a leitura compartilhada podem, se conduzidas com competência, estimular o gosto permanente pela leitura.
Vamos a eles.
Os alunos devem aprender desde cedo a identificar o ponto de vista do autor e da época, para evitarmos a vergonha dos cancelamentos de obras incômodas a olhos “modernos”.
Quando eu coordenei a equipe de produção do currículo do município de Sobral, no Ceará, tivemos que galgar vários degraus de complexidade para listar o que deve ser ensinado aos alunos para Língua Portuguesa (Matemática também, mas é outro assunto): oralidade, leitura, escrita e gramática são os eixos que compõem esse currículo (que pode ser baixado aqui. Recomendo que leiam, pelo menos, o Guia de Complexidade Textual que se encontra ao fim do currículo de Língua Portuguesa).
Ao final da estruturação do que deveria ser aprendido nesses subconjuntos, nos deparamos com o desafio de descrever critérios de escolha para o principal substrato para o ensino da nossa língua oficial: o texto! Observem que já tínhamos trilhado um árduo caminho de especificação curricular, por exemplo, indicando que em oralidade para o 7º ano que o aluno deveria conseguir realizar apresentações orais planejadas e/ou ensaiadas previamente: a) demonstrando eloquência; b) utilizando diferentes tipos de recursos, quando necessário; c) empregando introdução, desenvolvimento e breve conclusão; d) expondo, detalhadamente, os temas abordados em uma sequência lógica; e) adequando a linguagem ao contexto; f) integrando o espectador à apresentação.
Ou em gramática, para o 2º ano, utilizar, corretamente, as seguintes marcas de pontuação, com referência aos seus nomes formais, garantindo a fluência e a coerência do texto: a) ponto de interrogação, ponto final ou ponto de exclamação para finalização de frases; b) vírgulas para separação de elementos de uma enumeração; de nomes de lugares, das datas ou dos endereços; c) dois pontos para a introdução da fala dos personagens (discurso direto); d) travessão para marcação do discurso direto.
Ainda assim, sem textos de alta qualidade, esses objetivos de aprendizagem não fariam o menor sentido. Tentamos achar bibliografia pronta que nos ajudasse a definir critérios que os professores da rede municipal de Sobral deveriam usar para escolher as obras que iriam trabalhar com os alunos, mas, principalmente, junto com eles, formar os acervos das escolas para que a prefeitura pudesse adquirir as obras paradidáticas, algo que o prefeito vivia nos cobrando. Toca pôr a cabeça para funcionar.
Livros mais simples para leitores em começo de “carreira” e livros mais longos e de texto mais elaborado para os mais “profissionalizados”.
Então, criamos as seguintes categorias de critérios:
1) Características de apresentação do texto, como o equilíbrio adequado entre textos não verbais que auxiliem alunos pequenos na atratividade e compreensão do texto, sem que se substitua a leitura efetiva de um texto impresso por quadrinhos, como frequentemente acontece no contexto brasileiro, mesmo para alunos mais velhos. Outro aspecto desta categoria é a presença de 2) elementos informativos sobre a origem do texto, tais como quem é o autor, o ilustrador, em que período histórico foi escrito, quais os antecedentes e consequências da obra ou o que se passava à época em que o texto foi produzido. Para alunos mais velhos, as pesquisas adicionais para obter essas informações pode fazer parte do trabalho de compreensão, mas para os mais novos, a contextualização da obra pelo adulto que acompanha o estudo é muito importante. Os alunos devem aprender desde cedo a identificar o ponto de vista do autor e da época, para evitarmos a vergonha dos cancelamentos de obras incômodas a olhos “modernos”.
Outra questão largamente negligenciada pelas editoras e autores brasileiros, é a uniformidade do padrão impresso dos 3) tipos de letras e caracteres. Para leitores iniciantes, é essencial manter o padrão e a regularidade das letras e caracteres do alfabeto, pois o aluno ainda está registrando em seu cérebro as várias formas de se representar cada um. Pode ser que ele abandone a leitura, se começa a ver desenhos elaborados para representar o que aprende para a decodificação, porque há o risco de que não os reconheça e que não façam o menor sentido em uma leitura autônoma, que é o que se quer conquistar nessa etapa.
Escolher textos para formar sua mente e a de seus filhos e alunos é uma arte.
O segundo grupo de critérios são os que reúnem as características de construção do texto, como a estrutura dos períodos, as características gramaticais e a estrutura geral. Livros mais simples para leitores em começo de “carreira” e livros mais longos e de texto mais elaborado para os mais “profissionalizados”.
A terceira e mais famosa categoria é a que engloba o conteúdo em si: a temática, o vocabulário, os diferentes tipos de textos, os chamados gêneros textuais, cuja diferenciação é um verdadeiro fetiche entre educadores e linguistas. O tipo de texto, se é narrativo, argumentativo ou injuntivo, dependerá do que se quer estudar ou ensinar aos alunos em termos de técnica de escrita. Diferenciar conto de crônica, receita de convite e outras bobagens inúteis só mesmo nas cabeças de quem não tem a menor ideia do que fazer com interpretação e compreensão de textos.
Mas a mais complexa de todas e também a mais interessante para selecionar as obras que deverão ser trabalhadas com os alunos são o que resolvemos chamar no currículo de Sobral de “mecanismos de compreensão do sentido”. Isso quer dizer que na hora de escolher uma obra para estudo, o adulto – professor ou pai – terá de lê-la atentamente e verificar se ela permite uma interpretação clara, simples, direta, previsível ou não, com conexões explícitas entre fatos e suas consequências e que contam com um único conceito de significado a ser explorado, como, por exemplo, a moral da história, se os eventos – no caso de um texto narrativo, seguem o tempo cronológico, o que facilita muito a compreensão por mentes incipientes. Ou se vai achar seus textos no campo oposto do espectro de complexidade, onde a interpretação é mais complexa e imprevisível, com conexões entre fatos ou ideias implícitas ou difíceis de perceber, sem necessariamente manter a ordem cronológica do tempo e com diversos conceitos e significados a serem explorados.
Sim, escolher textos para formar sua mente e a de seus filhos e alunos é uma arte. O primeiro passo é que o adulto responsável forme a sua biblioteca mental de maneira profunda, estruturada e consistente. Espero que as dicas acima sejam úteis.