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Empregar com eficiência
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Uma das cenas urbanas mais marcantes para mim, quando penso na relação da pessoa com deficiência e a cidade, é ver um deficiente pedindo dinheiro nos ônibus, ou nos semáforos. A desigualdade econômica e social brasileira é um assunto denso, amplo e que não se restringe apenas a esse público. Não quero entrar nesse mérito. Trouxe o exemplo de um deficiente pedindo dinheiro, porque infelizmente é uma situação comum e é recheada de simbolismo.

A primeira coisa que eu me perguntei quando passei a encontrar com frequência esses personagens foi “Por que?” Afastei um pouco as questões macroeconômicas e tentei me transportar para a relação íntima que aquele deficiente tem com o que ele está fazendo. Como ele se vê? Como a sociedade o vê? O que está escrito por trás do gesto de alguém dando alguns trocados para essa pessoa em especial? A ajuda governamental oferecida por invalidez contribui para esse quadro?

Educação formal e informal, estrutura familiar, oportunidades de vida, contexto social, motivação pessoal e escolha por um caminho de vida, ou outro. Todos esses elementos ajudam a traçar a relação que alguém terá com o mercado de trabalho, mas o deficiente tem variáveis particulares nessa equação. Acessibilidade nas escolas, universidades e no transporte público, preparo físico e de software no ambiente de trabalho, sensibilização de gestores e colaboradores e a cereja do bolo, que tem feito tudo isso ser discutido e tem causado muito movimento: a Lei 8.213/91, a lei de cotas para deficientes no mercado de trabalho.


Em linhas bem gerais, a lei de cotas determina que empresas devem contratar pessoas com algum tipo de deficiência e a cota varia de acordo com o número total de colaboradores que ela tem.Empresas que têm entre 100 e 200 empregados devem reservar pelo menos 2% da quantidade de vagas para profissionais com deficiência. Para empresas com até 500 funcionários a cota sobe para 3%; com até 1 mil, 4%; e acima de 1 mil a cota estipulada pela lei é de 5%.

A empresa que descumprir a Lei 8.213/91, quando autuada, pode pagar uma multa que varia de R$ 1.195,13 a R$ 119.512,33 conforme a Portaria 1.199 de 28 de outubro de 2003. A multa é pesada e como a inclusão de pessoas com deficiência não era rotina de empresas e nem do próprio deficiente, muita coisa tem sido feita e o assunto rende assunto para muitas reuniões.

Em Curitiba, a UNILEHU (Universidade Livre para a Eficiência Humana) tem uma bagagem cheia de boas histórias e reflexões sobre esse tema. A iniciativa surgiu em 2004, em consequência de uma demanda pontual de uma empresa de grande porte que precisava realizar a inclusão no seu quadro. Em seis anos, a UNILEHU contribuiu para a inclusão de deficientes em diversas empresas, de variados ramos de atuação. Hoje a entidade está ligada a 26 delas.

“Hoje quando estamos em contato com uma empresa que irá contratar deficientes, trabalhamos uma conjugação verbal fundamental. Ao invés da empresa dizer que precisa cumprir a lei de cotas, ela deve dizer que quer”, comenta Andréa Koppe, presidente da UNILEHU.

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Andréa Koppe, presidente da UNILEHU

Eu mesmo tive uma experiência próxima a eles. Entre 2006 e 2007 eu passei pelas salas da Universidade Livre, em um programa de inclusão de aproximadamente 10 meses. A vivência foi transformadora, porque na minha sala de aula havia deficientes físicos, visuais e auditivos, com diferentes histórias e bagagens diferentes. Nada como uma boa mistura para pensarmos nas coisas. Eu acabei acompanhando de perto os desafios da inclusão de deficientes no mercado de trabalho e um dos pontos mais gritantes é a qualificação de mão de obra. Se acessibilidade na educação já é um assunto cabeludo, as consequências dessa falta de preparo sob o ponto de vista do emprego é assunto pra barbeiro nenhum botar defeito.

O trabalho da UNILEHU pega gancho nessa deixa da educação e vai até a outra ponta do processo que, envolve a inclusão do profissional na empresa. A entidade trabalha a capacitação do candidato em sala de aula, oferecendo cursos e ministrando módulos que fazem com que o deficiente seja preparado não só tecnicamente, mas psicologicamente e emocionalmente também.

Claudio Tavares é protagonista de outra iniciativa de inclusão e apostou em suportes diferentes. O site Deficiente Online funciona como um banco de dados de currículos e de vagas destinadas a pessoas com deficiência. Cláudio trabalha para criar uma ponte entre o candidato e a empresa, tendo como principal ferramenta a tecnologia da web e hoje conta com um banco de 14.372 currículos e 2.041 vagas de emprego para pessoas com deficiência.

O Claudio tem uma motivação pela inclusão bem próxima da sua vida pessoal. O idealizador do Deficiente Online é deficiente físico e lembra como foi a busca pelo primeiro emprego, na década de 90. “Naquela época o preconceito era maior. A crença de que o deficiente seria improdutivo era mais forte e quando eu consegui uma vaga, eu tinha qualificação, mas, mesmo assim, me ofereceram um sub-emprego”. A primeira chance de desenvolvimento profissional veio com a Associação Paranaense de Reabilitação (APR). Tavares trabalhou ali por 12 anos na área de informática, ferramenta que o ajuda hoje a promover inclusão.

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Claudio Tavares é responsável pelo Deficiente Online, iniciativa administrada também por sua esposa, Keli Tavares


Mudança no espelho

O fato da movimentação no mercado de trabalho estar sendo provocada por uma lei de cotas cria uma faca de dois gumes. “Há a sensação de que o fato da empresa ser obrigada a contratá-lo, garante estabilidade no emprego. Hoje isso é ilusão”, aponta Andréa. A relação entre a empresa e a inclusão passa por diferentes estágios, que apontam para uma equidade no tratamento e na exigência de produtividade, algo natural em um ambiente corporativo.

1 – Negação – A empresa reconhece a lei, mas não reconhece o seu papel. Acredita que isso é um problema governamental.
2 – Obrigação – Ela precisa incluir de uma maneira ou de outra. O momento do “eu preciso”.
3 – Ação social – A contratação de alguns candidatos gera uma sensação de euforia. A empresa reconhece o papel social da inclusão e tende a abraçar a causa.
4 – Resistência – Contratar não é o suficiente. Existem outros desafios relacionados à produtividade e à postura do colaborador com deficiência.
5 – Resolução – A inclusão é um desafio corporativo como qualquer outro e a empresa assume a responsabilidade de gestão da questão.

A evolução da postura da empresa é algo positivo para os dois lados. O colaborador com deficiência deixa de assumir uma condição especial e blindada e passa a ser acompanhado como qualquer outro colega. Isso nada tem a ver com falta de preparo da estrutura, ou de sensibilização de pessoal. Tem a ver com o fim da “síndrome do bichinho de estimação”, uma visão bastante distorcida da presença de um colaborador com deficiência. Uma gestão mais madura também contribui para derrubar o entrave interno do “você está aqui só por causa da cota”, como comenta Andréa Koppe.

Esse contexto mais maduro tem impacto direto no candidato. A busca por qualificação e maior preparo é sinalizada tanto por Andréa, quanto por Claudio. “Temos um número expressivo de currículos cadastrados de candidatos que estão cursando, ou que concluíram um curso”, ressalta Claudio. Isso é positivo, porque valoriza ainda mais o profissional com deficiência e contribui para o aumento da retenção dos profissionais com deficiência. Para mim, o mais fundamental é que a motivação para o crescimento faz com que o deficiente esteja mais presente em sociedade. Faz com que ele vá mais vezes a espaços públicos, que ele cause reflexão em momentos inusitados com mais frequência. Inclusão tem a ver com cultura de convivência e se alguém quer transformar isso pra melhor, tem que mostrar a cara.

Por falar em convivência, o ambiente corporativo proporciona uma oportunidade interessantíssima de socialização e autoconhecimento. Se o nível de avaliação de gestores vem se transformando ao longo do tempo, significa que o profissional pode entrar de cabeça em um universo de desafios que irão colocá-lo em um novo patamar de percepção em relação aos seus limites e possibilidades.

“Na empresa a inclusão feita pelo gestor é diferente da inclusão feita pelo colega. O gestor lida com a questão tendo mais ênfase no olhar estratégico. Ele lida com a cota, com as metas de contratação, com o processo de seleção e etc. O colega lida com isso de forma mais próxima. É quem vai conviver mais de perto e diariamente”, relata Andréa. A UNILEHU percebeu que a convivência com um colega de trabalho com deficiência faz com que a equipe perceba quais são as reais limitações daquele profissional e impeça que ele faça corpo mole, ou que use a sua deficiência como bengala. Por outro lado, a equipe tem a possibilidade de ajudar o deficiente a trabalhar e potencializar os seus pontos fortes, ou perceber suas oportunidades de melhoria.

“Temos um caso interessante em uma equipe de call centre. Nesse setor havia um colaborador com deficiência visual e isso comprometia a agilidade que ele precisava ter para atingir a meta exigida pela empresa. A equipe e a gestão perceberam que a melhor maneira de lidar com isso foi diminuir a meta do colaborador, sem que ela deixasse de ser desafiante para ele, e o resto do time assumiu essa pequena lacuna”, conta a presidente da UNILEHU.

É engraçado que com quanto mais naturalidade a questão é encarada, melhor é. A Andréa me lançou uma reflexão em relação a isso que eu achei fantástica: “Uma empresa lida diariamente com desafios complexos. Ela deve sempre vender por mais, gastando menos, lidando com inúmeras adversidades. Por que ela não pode enxergar a inclusão como mais um desafio natural?”

O Deficiente Online derruba barreiras sob um outro ponto de vista. O foco do trabalho deles não está no acompanhamento próximo do candidato, mas oferece uma ferramenta que permite que ele procure uma oportunidade usando apenas a internet. A pessoa não precisa nem sair de casa. É uma ótima possibilidade, porque anula a questão do transporte, da calçada, da escada, da falta de intérprete, etc. Pelo menos para um começo de conversa entre o candidato e a empresa, é uma boa sim.

O mundo está realmente em transformação. A tecnologia nos ajuda a transpor limites, as empresas hoje começam a encarar a inclusão de uma forma mais aberta, com mais jogo de cintura e o próprio deficiente reconhece melhor suas potencialidades e almeja passos mais largos em uma carreira profissional. Ora, eu tive até a possibilidade de divulgar o êxito de duas ações sociais, o que derruba outro mito: o de que ações sociais precisam sofrer amargamente nesse mundo de meu Deus.

Vou mais uma vez pegar emprestada as palavras da Andréa Koppe: “Na inclusão no mercado de trabalho não há vilões e nem vítimas. Todo mundo está junto nisso”. Eu concordo e complemento que os dois lados podem assumir o papel de vítimas, vilões, ou heróis.

Em 2006, na UNILEHU mesmo, eu conheci um deficiente visual que era transexual. Paramentado com diversos argumentos relacionados à falta de oportunidades e preconceitos, ele provocava reflexões, porque ele estava inserido em uma minoria de uma minoria, algo muito complicado. Meses depois, eu soube que ele teve uma oportunidade real de se desenvolver e buscar de maneira concreta uma oportunidade de trabalho, só que para isso, precisaria voltar a estudar. Ele desistiu.

No último domingo eu conheci uma fisioterapeuta que atende um homem de pouco mais de 50 anos que sofre de paralisia parcial do lado esquerdo do corpo. Ela me contou que esse homem encontrou uma oportunidade de emprego em uma rede de supermercados, que estava anunciando a contratação de pessoas com deficiência. A loja não tinha acessibilidade nem para ele chegar à sala de entrevistas.

Independente dos avanços, tecnologias, leis, incentivos, ou programas, vamos sempre ter pessoas que podem preferir ficar na estabilidade do benefício continuado e complementar a renda com o trabalho informal, ou empresas que continuem a dizer “eu preciso cumprir cotas”. A inclusão não é mais uma questão relacionada exclusivamente a fatores externos. Hoje ela é uma questão de escolha.

E essa movimentação não para e acontece enquanto eu escrevo esse post, literalmente. No dia 22 de julho eu estive no lançamento de mais uma iniciativa pela inclusão, que eu espero que brilhe. A Adaptare, de Mirella Prosdócimo e Tatiana Moura.

Serviço:
Deficiente Online

http://www.deficienteonline.com.br/
(11) 3711-4571
(41) 3014-0632
(21) 3717-3009

Universidade Livre para a Eficiência Humana (UNILEHU)
http://www.unilehu.org.br/
Rua Visconde do Rio Branco, 888 – Mercês
Telefone: (41) 3333- 6921 e (41) 3333-6464

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