Voltei há pouco de uma vivência marcante em Foz do Iguaçu. Passei quatro dias na companhia de 116 pessoas que juntas debatiam, refletiam e eram orientadas por uma equipe de profissionais de diversas áreas para tentar encontrar a resposta para uma pergunta dificílima: qual o propósito da minha vida? Ninguém saiu de lá com a resposta na ponta da língua, mas ficou com pelo menos algumas dicas, percebeu algumas pistas e teve uma chance única de se conhecer um pouco mais.
O mote dessa discussão toda foi a autossuperação. Discutimos profundamente esse conceito e ouvimos histórias surpreendentes de pessoas que experimentaram esse momento em que você transgride a si mesmo. É uma transgressão prazerosa, porque a barreira é imposta pelo próprio autor da audácia. O limite, o medo, a crença de que não é possível e a ideia de que “daqui você não passa” são restrições estabelecidas e confrontadas pela mesma consciência. Somos vigias e bandidos ao mesmo tempo quando nos autossuperamos.
Trazendo essa palavra para mais perto de mim e olhando a minha história, comecei a lembrar das vezes que eu ouvi a palavra superação na fala de outras pessoas. Era comum me falarem que minha força de vontade é um exemplo, seja no momento de recuperação de uma cirurgia, ou quando alguém me vê tocando a cadeira pelas gloriosas calçadas curitibanas.
Por mais de uma vez eu ouvi alguém dizer que “tem tanta gente por aí que não tem problema nenhum e não faz nada da vida e você sentado numa cadeira de rodas faz as suas coisas. Essas pessoas deveriam pensar nisso”. Deveriam mesmo, mas não dessa maneira.
Eu acho interessante quando um deficiente tem a chance de falar, numa palestra por exemplo, sobre motivação, superação, persistência e tudo mais. Mas eu também sei que quem ouve ele falando tira a conclusão que aponta sempre pra mesma direção: “Eu reclamo de barriga cheia”. É positivo, mas parcial.
Imagine que a situação da palestra e do reconhecimento é um lado de uma moeda. Vou agora olhar o outro lado.
Por mais de uma vez eu já ouvi alguém dizer que eu mereço ser curado, já fui chamado de coitado e já me ofereceram esmola. Quando comento que eu viajo sozinho, alguns arregalam os olhos e me perguntam “mas você tem coragem?” e eu fico pensando que essa independência realmente espanta. Quando contei que eu havia comprado um apartamento e que quando a obra ficasse pronta eu finalmente sairia da casa dos meus pais, um parente bateu amigavelmente na minha perna e disse que era bobagem, que eu deveria guardar dinheiro e completou com a frase “Se é difícil para mim, imagine para você”.
Paradoxal isso.
Se eu enfrento as adversidades, sou visto como herói. Se eu me entrego a elas, sou vítima de uma infelicidade. A linha é tênue, a visão turva e o conceito capenga. É possível ver isso de uma outra perspectiva, usando os mesmos parâmetros. Quem já ouviu a frase “o limite está na mente”, sabe que ela é muito comum na inclusão. Vou tirá-la desse contexto e propor um outro olhar.
Quero emprestar essa ideia de limite interno para um dependente de álcool, para um viciado em drogas e para uma pessoa que precisa de remédios psiquiátricos controlados para desempenhar atividades diárias. Vou ainda considerar que eles decidiram intimamente mudar o curso de suas vidas, abandonando um vício, ou comprometendo-se com um tratamento. Nessa fase, essas três pessoas conhecem de perto coisas que eu também conheço: dor física, preconceito social, estagnação de espírito e a sensação de ter que enfrentar um monstro impossível de ser visto, mensurado e combatido. Correm o risco de serem abandonados pela família, pelos amigos e têm consciência de que por vezes as pessoas não vão saber lidar com esse momento de virada.
Se eles resolverem levar a cabo a autossuperação que têm dentro de si e enfrentarem suas barreiras, serão vitoriosos numa jornada longa, paulatina, que demanda dedicação e persistência. As conquistas são pequenas, vêm em gotas, e só eles saberão a importância de cada uma delas.
Colocando as características lado a lado, qual a diferença entre eu e eles? E ainda há gente que olha a vitória deles com maus olhos. Polêmico, não?
Pensar que a superação de limites é digna de troféu é uma postura delicada, se focarmos apenas uma pessoa. A saída: começar a encarar a inclusão como uma vitória conjunta. A chance: perceber que se você participa da superação de alguém, você quebra um paradigma em você mesmo.
Como estou ampliando conceitos, quero parar de falar em inclusão e vou passar a falar em renovação. Isso só acontece em rede e mexe com todo mundo. Que tal você levar isso para a sua própria vida e fazer um exercício? Tente se lembrar de todos os momentos em que você se superou e coloque perto desse momento todas as pessoas que fizeram parte dessa conquista. Eu quis ser cobaia disso e vi uma coisa assim:
As pessoas ao redor das minhas conquistas fazem parte delas e isso vale para qualquer pessoa, independente do contexto.
A inclusão é uma renovação no pensar, no agir,no relativizar e precisa ter seu escopo ampliado. Juntos temos a chance de derrubar preconceitos e estar no mundo de forma mais tolerante e engajada.
Olhando para trás eu não consigo encontrar um momento sequer de conquista em que eu estivesse sozinho. Passo por momentos simples, como a presença do Elias, um funcionário do meu colégio, que me dizia “Não se preocupe, Rafaelzinho. Todos os dias eu estarei aqui para te carregar pela escada, na entrada e na saída da aula” e vou a situações mais complicadas, como viajar sozinho e ficar hospedado num albergue carioca, percebendo que hóspedes e funcionários se mobilizariam para possibilitar a minha estada lá. A conquista nunca foi minha. Mas de todas as pessoas que mesmo por um momento transformaram a maneira que viam o mundo e praticaram uma alternativa.
Deficiente não é vítima nem herói. É uma condição de releitura. Quer fazer parte?