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“O mês de março foi de reencontros. Depois de retomar contato com uma amiga (hoje jornalista, ontem caloura minha) saí para jantar e lembrar de coisas que só dois ex-colegas de faculdade conseguem. Professores, provas, as expectativas de sala de aula, as similaridades e diferenças entre o discurso teórico e a prática do mercado e muito saudosismo no momento da lembrança do parto de quadrigêmeos que é a produção de um Trabalho de Conclusão de Curso.

Fui levado de volta ao início dos anos 2000, época em que o mundo era bem menor e parecia ser infinito na minha cabeça e na dos meus colegas. Durante um tempo, a universidade nos deu a sensação de que as possibilidades eram infinitas e pensar nisso também me fez lembrar em como nossas preocupações eram menores do que são hoje. Sim, era um pequeno grande mundinho.

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Ao ouvir e também contar fatos sobre o emprego atual e atividades que já viraram história na minha mala sem fundo de experiência de vida, me reencontrei com antigos planos, antigas ideias, antigos quereres. Coisas antigas, mas não muito velhas, porque me formei há menos de cinco anos. É interessante perceber como esse tempo é tão relativo. Planos que eu e minha amiga tínhamos entraram para o nosso museu, porque não vingaram, ou tomaram outro rumo, ou porque eram ruins mesmo. Por vezes, esse passado dá lugar a um presente mais inesperado, que acaba virando um futuro que faz sentido.

Causos, risadas e comentários do tipo “nossa, esse professor continuou falando isso para as turmas?” depois, a comida acabou, a conta foi paga e a chuva chegou.

A típica companheira climática curitibana também me levou de volta no tempo. Lembrei dos muitos quilômetros que eu rodei de ônibus, indo de “vermelhão” em “vermelhão”, ou me desesperando para tentar chegar a tempo de pegar os ligeirinhos. Entre essas pedaladas da cadeira no asfalto, volta e meia eu tinha como companhia a chuva e ela sempre entrou no meu dia, ou na minha noite, de forma intrometida, me deixando sem escolha. Tocar a cadeira ao mesmo tempo em que se segura um guarda-chuva é uma situação impensável, quase tragicômica, então eu convivi com a água na minha cabeça.

Acabei criando uma escala de chuvômetro, que vai de uma garoa leve, daquelas que só servem para embaçar os meus óculos, até as impraticáveis. Aquela era impraticável.

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Chamei um taxi e fiquei esperando, dentro do estabelecimento. Quando vi o carro laranja encostando, próximo à sarjeta, pedi reforço. Chamei um colaborador do restaurante e perguntei se ele poderia me acompanhar até o taxi, me dando cobertura. O guarda-chuva, para uma pessoa, cumpriu o papel, deixando só o meu sapato completamente encharcado, e o meu breve amigo, seco. Eu e minha amiga nos despedimos rapidamente, depois consegui chegar à porta traseira do passageiro e abri. Era hora de mais um reencontro.

O motorista não se moveu. Não sei se ele não me viu, ou se fez pouco caso, mas não se moveu. Eu disse que ele precisaria descer do carro, para guardar a cadeira. Ele retrucou.

– Ah, então quer dizer que eu vou ter que me molhar e trabalhar a noite inteira molhado?

– Sim, você vai precisar descer, porque eu preciso da sua ajuda para colocar a cadeira dentro do carro.

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Eu deveria ter fechado a porta e mandado o cara ir embora. Me sinto muito ofendido quando isso acontece. Ter má vontade para lidar com a cadeira é me desrespeitar completamente, dizendo na minha cara que a deficiência é inconveniente, que dá trabalho e que incomoda. Os taxistas parados no ponto da rodoviária são os piores nesse sentido. Já passei por uma fila de quatro carros, com uma mala no meu colo, e não fui atendido por nenhum, sendo que o último motorista fechou o vidro enquanto eu falava com ele. Infelizmente meu amigo, o problema não some atrás do seu insulfilm.

Eu não queria esperar outro carro, então resolvi dar uma chance para aquele mesmo.

Ele desceu sim, bufando como um touro e resmungando como Zé Buscapé. Ele tomou o guarda-chuva das mãos do homem que foi comigo até ali e eu soltei a cadeira pra entrar no carro. Percebi que ela desceu quase um metro pela calçada e o meu breve amigo ficou olhando para o motorista com cara de “esse guarda-chuva é meu e eu preciso dele de volta”. Zé Buscapé perdeu sua cobertura e minha cadeira, com a minha mochila, estava sem há minutos. Ela estava encharcada.

Já dentro do carro, ouvi Zé Buscapé lançando a cadeira para dentro do porta-malas. Confesso que fiquei imaginando como ele conseguiu tal façanha e acredito que ele não deve ter feito isso, mas o som dela sendo guardada me deu a impressão de algo que foi feito com uma certa pressa, evidenciada pela forte chuva, mas com uma cobertura de bolo para aquela sobremesa indigesta, chamada ira.

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Naquele momento eu estava completamente sem saída. Estava dentro do carro, sem ter como descer e nem desistir do meu passeio em companhia de um motorista que não queria me transportar. Fiz a única coisa que pude: respirei, enquanto ouvia os últimos atos de Zé, batendo as portas. Por um segundo eu pensei em qual tom o meu destino iria sair da minha boca. Se eu assumiria o tom Buscapé, ou se eu falaria com a naturalidade que pede um palavrão irresistível ao final da frase. Segundos depois, eu não precisei mais pensar nisso. O motorista decidiu por mim.

Ele sentou no banco da frente e me deu a cereja daquele bolo instantâneo, sabor atrito. Com os meus apoios de pé na mão, ele fechou a sua porta e jogou os apoios no banco do passageiro ao seu lado. Esse ato foi sim feito com a violência necessária para evidenciar que tudo ia de mal a pior: naquela noite, Zé Buscapé enfrentou um trânsito pesado para chegar até onde eu estava, se deparou com um passageiro cadeirante, que exigiria mais engajamento do que o normal, precisou sair na chuva desprotegido, levou uma invertida do cliente e ainda precisou guardar uma cadeira de rodas. Sim. Tudo muito inconveniente.

Me locomovo numa cadeira de rodas há 21 anos e eu nunca tinha passado por uma situação como essa. Talvez naquele momento, o motorista chamou todo o histórico de más experiências na vida dele; somou isso a tudo o que ele não queria que estivesse acontecendo (e definitivamente transportar um cadeirante na chuva era uma delas) e descontou a raiva nas minhas coisas, tratando os meus pertences, e consequentemente a mim, como lixo.

Incontrolavelmente, puxei o meu histórico também. Em uma fração de segundos eu lembrei de todos os momentos em que eu me senti prejudicado, deixado de lado, inferiorizado, descriminado e desrespeitado. Devolvi a tacada dos meus apoios de pé instantaneamente com uma série de socos contra apoio de cabeça do motorista, que foram acompanhados pela próxima coisa que eu falei, que não tinha nada a ver com o meu destino:

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– Qual é o seu problema? Dane-se, dane-se que você vai precisar trabalhar molhado! Ou você não se deu conta que isso faz parte do seu emprego? E eu? Você não viu que eu estou numa cadeira de rodas e precisava da sua ajuda? Como você pode me desrespeitar desse jeito?

– Eu não estou falando com você! Eu não estou falando com você! Você vai me fazer bater o carro, hein?

Respirei mais uma vez, enquanto Buscapé reclamava mais um pouco e tentava desembarcar o vidro. Passei 15 segundos sentindo uma leveza que eu não sentia há muito tempo e falei em normalidade para onde eu queria ir. A corrida aconteceu sem outra palavra”.
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Essa passagem aconteceu comigo num sábado à noite. Ao pensar sobre isso, não fiquei pensando no desrespeito do taxista, nem na possibilidade de ir além de uma reclamação formal contra a companhia de taxi. Não quis que o taxista perdesse o emprego dele, aliás, minha vontade era o contrário disso.

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O que não saiu da minha cabeça foi a reação que temos quando encaramos o nosso limite de tolerância ao desrespeito. Cada pessoa tem o seu e eu acabei percebendo que ele grita, e grita alto, quando nos sentimos eliminados.

Essa eliminação pode ser provocada por algo muito banal, como o assalto à geladeira que tem como perda aquele iogurte que você comprou para você mesmo. Se o assaltante faminto é uma pessoa com quem você não tem muita intimidade, como um cunhado inconveniente, esse ato pode tomar proporções maiores. Essa pessoa não te conhece, ignora as suas vontades, não sabe de sua história, muito menos o que aquele iogurte significa para você. É como se você não existisse naquele momento e é isso o que faz o sangue ferver.

Transportando essa ideia pro meu mundo, fica bem claro que a passagem que eu acabei de contar representa o ápice disso. Não há nada pior do que você pressionar o ponto fraco de uma pessoa que a deixa completamente exposta. O deficiente é um alvo muito fácil para esse tipo de atitude, porque a fraqueza é escancarada, faz parte dele e não tem como esconder.

Faça careta enquanto fala com um cego, xingue um surdo pelas costas, abandone um tetraplégico num prédio vazio e deixe todas as portas de acesso abertas, faça aquela imitação clássica de uma pessoa “retardada” para os pais de um deficiente intelectual. Demonstre preguiça em ajudar qualquer uma dessas pessoas a ter acesso a algo. Mostre que incomoda, que te dá uma certa vergonha.

Caçoe de homossexuais, fale daquela pessoa gordinha que está sozinha num baile de carnaval, conte uma piada racista enquanto toma cerveja com os seus amigos e peça para um japonês, chinês, ou coreano abrir os olhos.

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O festival de atitudes imbecis nunca vai ter fim. As piadas na escola não vão parar, a falta de compreensão não vai deixar de existir, o preconceito não vai sumir, porque ele faz parte de nós. O que pode, e deve mudar, é o que devolvemos em relação a tudo isso. Eliminar o primeiro ato de grosseria é impossível, mas é muito viável deixarmos de reproduzir reações completamente desnecessárias, como a minha.

A minha vontade era bater a cabeça do taxista contra o volante até o nariz dele quebrar. Sentir que eu fui mais forte do que a falta de educação e ofensa dele. Mas pra que? Eu perdi a chance de fazer daquela situação uma oportunidade de construir a paz. Eu também faltei com respeito, não olhei a situação com cuidado, eliminei as razões que fizeram o homem não querer se molhar e passar horas assim e despejei raiva

Parece pequeno demais, afinal, evitar uma discussão não é construir a paz. Quando pensamos em paz pensamos no fim das guerras, em impedir massacres, na diminuição de assaltos. Erro nosso.

Sempre lembramos do mais extremo e nos esquecemos de que tudo é um processo acumulativo, que culmina nas extremidades, quando os lados que não se entendem acreditam que não podem coexistir. E a coexistência vem da tolerância.

Tudo depende de como você reage ao roubo do seu iogurte. É o que você devolve ao que é, até o momento, inevitável, como diferenças econômicas, oportunidades desiguais, valores excludentes, ilusão de superioridade e piadas de mau gosto.

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Diminua a violência parando de reproduzi-la. Uma alternativa é possível.

Conheça outros trabalhos do ilustrador Reinaldo Rosa:

http://www.flickr.com/photos/r2_ilustras/

http://reinaldorosailustrador.blogspot.com/

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