| Foto: Rahul Shah/ Pexels
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Há alguns dias, saiu a edição mais recente da pesquisa realizada pelo Instituto Pró-Livro (IPL) “Retratos da Leitura no Brasil”, que apresenta dados sobre o comportamento leitor dos brasileiros. A pesquisa é realizada a cada quatro anos, desde 2007. Infelizmente, as conclusões não são uma grande novidade: é evidente a tendência de queda da leitura entre os brasileiros.

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Há diversas formas possíveis de comentar esses resultados. No presente artigo, queremos refletir sobre como eles suscitam preocupações em relação à promoção de virtudes relevantes para a democracia. Certamente, não pretendemos argumentar que o hábito da leitura garante que uma pessoa seja ética e íntegra: mesmo assim, é possível considerar que ela favorece, sim, o cultivo de características valiosas para o fomento de uma cultura mais democrática.

Ler nos coloca em condições favoráveis para o exercício de virtudes como a curiosidade, o aprendizado, a reflexão, a observação atenta e ponderada

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Por exemplo, pensemos numa questão bastante presente no cenário contemporâneo: a polarização afetiva. Em linhas gerais, ela se fundamenta em raciocínios como o seguinte:

  1. O mundo se divide entre pessoas boas e pessoas más;
  2. Eu sou bom;
  3. Eu sou de direita/esquerda;
  4. Portanto: as pessoas de direita/esquerda são boas e as pessoas de direita/esquerda são más.

Baseando-nos nesse estilo de reflexão, podemos imaginar algumas atitudes consequentes. Com poucas perguntas – por exemplo: “Em quem você votou na última eleição?”; “Quais jornais você gosta de ler?”, “O que você acha daquele político?”; enfim, “De que lado você está?” –, acreditamos que podemos concluir rapidamente se tal sujeito é “um dos nossos” e se podemos (ou não) confiar e contar com ele. Enfim, é algo simples, prático, que “funciona”. De um ponto de vista meramente “evolutivo”, tal modo de comportamento atende a nossos instintos mais básicos de sobrevivência e de aceitação. Ou seja, é compreensível e razoável.

Porém, se extrapolamos essa lógica considerando todo o tecido social, qual tendência que estamos alimentando? Pessoas que dividem o mundo entre tribos de parceiros/adversários, que preferem se fechar no interior de suas bolhas, que são altamente tendenciosas em suas considerações, facilmente vulneráveis a teorias da conspiração sem lastro em evidências, com preguiça de aprenderem coisas novas e de conversarem com quem pensa diferente, que acreditam ter a solução rápida e simples para tudo.

A tentação permanente será queimarmos etapas para fazer com que a nossa opinião, proposta, modo de ver etc. prevaleça sobre as outras. Assim, deliberações se tornam, no máximo, “ficções” na qual nos envolvemos simplesmente para vencer, para nos destacar, para fazer valer a nossa vontade, numa clara lógica de “disputa entre amigos e inimigos”. Se adicionarmos nessa receita o ingrediente da violência, a perspectiva de futuro não parece muito promissora para a democracia.

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E, o que a leitura tem a ver com tudo isso? Ora, ler nos coloca em condições favoráveis para o exercício de virtudes como a curiosidade, o aprendizado, a reflexão, a observação atenta e ponderada. Nesse sentido, se a pessoa conseguir evitar o perigoso risco da presunção de se achar o “intelectualista sabe-tudo”, há o potencial positivo de a leitura ajudá-la a crescer também na virtude da humildade: quanto mais lemos, mais enxergamos o quanto sabemos pouco (o famoso “sei que nada sei”) e o quanto a realidade transcende as nossas próprias opiniões. E, com isso, florescem atitudes preciosas como a capacidade de realmente ouvir e conhecer os outros – não para julgá-los apressadamente –, examinar as informações com cautela, tirar conclusões mais cuidadosas e, portanto, menos enviesadas por raciocínios demasiado precipitados e simplórios.

Ou seja, se cultivamos a leitura de um modo saudável e razoável, a tendência é nos tornarmos menos apegados a nós mesmos e a nossas próprias opiniões e tais características são extremamente importantes para uma democracia. Afinal, pessoas que sabem que têm muito a aprender com os outros, que não são as “donas da verdade”, que precisam buscar e construir soluções para os problemas de modo coletivo e não apenas da “sua própria cabeça”, estão se formando para conviver democraticamente, num sentido profundo.

No cenário atual, é comum que se argumente que tal postura, na verdade, mascara um relativismo pernicioso ou um covarde “ficar em cima do muro”. Se for apenas isso, concordo com tais críticas. Porém, se estamos falando de uma perspectiva que busca honestamente aprender, tentar, errar e, portanto, respeitar a realidade, penso que não há nada mais corajoso do que isso: e a coragem também é uma bela e importante virtude para a democracia. Se estamos comprometidos com a nossa cultura democrática, faz sentido nos preocuparmos com a nossa formação para a leitura.

Guilherme Melo de Freitas, gerente de Educação do Instituto Sivis, é doutor em Educação pela USP.

Infográficos Gazeta do Povo[Clique para ampliar]
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