Encravada no extremo Sul da Holanda, Maastricht pode ser considerada a capital da Europa moderna. Na pequena cidade, foi assinado em 1992 o tratado que deu origem a União Europeia. Mais do que um acordo político, o documento foi o embrião de uma Europa pacificada, cujas fronteiras foram se dissolvendo ao ritmo da integração social, política e econômica.
A simpática cidade medieval fica próxima da fronteira com a Alemanha e Bélgica. Percorrendo um trajeto de cerca de 100 quilômetros, é possível cruzar as fronteiras entre os três países. E nada melhor do que fazer isso de bicicleta para sentir a verdadeira integração europeia, observando as paisagens, a cultura e as particularidades de cada um dos países.
Saindo de Maastricht rumo ao Leste, é possível tomar a ciclorrota nºL6 – chamada Plateu Route — em direção à fronteira com a Alemanha para a cidade de Aachen (Aquisgrano), antiga capital do Sacro Império Romano-Germano do imperador Carlos Magno.
No caminho, a estrada projetada apenas para bicicletas cruza diversas outras rotas. A qualidade do pavimento e a sinalização é de causar inveja até mesmo às estradas pedageadas do Brasil. Na paisagem, misturam-se castelos medievais e os típicos moinhos de vento holandeses. O trajeto passa por meio de pequenas propriedades rurais com plantações e criações de gado, carneiros e cavalos. Nas pequenas vilas pelo caminho, a passagem do tempo parece seguir uma lógica particular. A cada pedalada, a sensação de estar vivendo dentro de uma daquelas fotografias daquela Europa que sempre esteve nos meus sonhos.
A passagem para a Alemanha é imperceptível. Não há fronteira física, aduana ou posto de controle. Só me dei conta de que já estava sob território tedesco quando uma placa, em bom alemão, me deu as boas à cidade de Aachen, capital do estado de Renânia do Norte-Vestfália.
.No centro da cidade, uma praça abriga uma feira culinária com comidas típicas alemãs. Aproveitei para comer um tradicional cachorro-quente, com salsicha branca (weisswurst) e chucrute.
Tal como na Holanda, a infraestrutura para as bicicletas está totalmente integrada às cidades alemãs. É grande o volume de pessoas que usam a bicicleta como meio de transporte, embora o número de carros nas ruas seja perceptivelmente superior. Ainda assim, impera a segurança absoluta para os que optam pelo veículo de duas rodas.
Saindo de Aachen, pedalei em direção ao Sudoeste, para a cidade de Kelmis, na Bélgica. Novamente a fronteira é praticamente inexistente. Apenas uma placa com o símbolo da União Europeia saúda a visita a Alemanha e outra dá as boas vindas à Bélgica – em francês e em flamenco, as duas línguas oficiais do país.
Apesar do livre acesso de pessoas, bens e serviços, a linha imaginária que separa as duas nações marca também uma transição para quem pedala. Na Bélgica, a ciclovia acaba já na primeira cidade após a fronteira. A partir dali, é preciso pedalar na estrada, que não possui acostamento ou faixa de segurança. Mesmo assim, apesar o movimento de veículos e caminhões, em momento algum me senti em uma situação de perigo. Nem mesmo quando, de fato, estive em uma delas.
Após a cidade de Kelmis, segui a direção das placas indicando a cidade de Liège e acabei caindo em uma autoestrada. Com pistas largas e amplo acostamento, fui pedalando o mais longe possível da pista. Muitos carros ao passarem por mim buzinavam, o que me fez pensar que, ou na Bélgica eles gostam muito de ciclistas, ou eu não deveria estar pedalando ali.
Após percorrer cerca de 10 quilômetros na estrada, uma viatura da polícia belga deu a resposta definitiva, acionanndo a sirene logo atrás de mim, pedindo para eu encostasse, tal qual em uma cena de filme.
Mesmo já sabendo a resposta, a primeira reação que tive foi a perguntar ao policial, em inglês, se eu estava autorizado a pedalar ali.
“Não, não está! Isso aqui é uma autoestrada e não é permitido o tráfego de bicicletas”, ele respondeu. “Você vai ter que pagar uma multa de 55 euros por pedalar em local proibido”, completou.
Minha primeira reação foi perguntar “É sério?” – como para mim mesmo, por ter me metido naquela situação — , o que deixou o policial visivelmente contrariado. “Sim, é claro que isso é sério!”. O policial pediu meu passaporte e, enquanto checava o documento, perguntou de onde eu vinha. Automaticamente, respondi que do Brasil. Ele e os outros dois policiais da viatura acharam graça da resposta. “E veio até aqui pedalando?”, disse, em um tom já mais amistoso.
Expliquei que havia saído pela manhã de Maastricht, passado por Aachen e que seguiria para Liège. Pedi desculpas pelo ocorrido e expliquei que havia pego a estrada por engano, seguindo as placas em direção à Liège. Quando abri minha carteira para pegar o dinheiro da multa, vi que me faltavam 20 euros. Aflito, expliquei a situação. “Podemos ir a cidade mais próxima e eu posso sacar o restante do valor, mas isso tem que ser rápido, pois preciso estar de volta a Maastricht antes do pôr-do-sol”.
O policial olhou para mim e respondeu. “Quer saber? Pegue sua bicicleta, atravesse aquela ponte, siga pela estrada 406. Mas se voltarmos a vê-lo pedalando na autoestrada, aí a multa vai ser dobrada, combinado?”.
Como combinado, segui pela estrada secundária. Nesta época do ano, por volta das 16 horas, o sol já começa a se pôr nesta região. Faltando ainda cerca de 25 quilômetros até Liège, pedalei forte, pra tentar ganhar tempo. Quase já de noite, com medo de pedalar no escuro, tive ainda que encarar uma subida violenta em uma serra ao sul da cidade.
Como cheguei já de noite, tive de abortar a ideia de pedalar os 30 quilômetros restantes entre Liège e Maastricht. Aproveitei a estada na cidade para percorrer as ruas do centro, comer uma típica porção de batata frita e tomar uma saborosa cerveja. Nada mais belga do que isso. Segui pedalando até a estação de trem de Guillelmins, onde embarquei com a bicicleta para uma viagem de volta de meia hora até Maastricht.
Ao chegar por volta das 19 horas à casa do meu amigo Carlos, onde me hospedei, ele já estava quase a um passo de contatar a Interpol para investigar o caso do ciclista brasileiro desaparecido em algum ponto incerto da região da tríplice fronteira europeia.
Só então pude relaxar e curtir o meu feito. Afinal, não é todo dia que se pode pedalar por três países em apenas um dia e viver emoções tão intensas.
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