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Atravessar a África de bicicleta não é tarefa fácil. A exigência física é intensa, mas é apenas uma fração da preparação necessária para superar as dificuldades do dia a dia. O lado emocional acaba sendo tão ou mais relevante que o condicionamento físico para lidarmos com as dificuldades e imprevistos que surgem durante a expedição.

Acordar cedo, para mim, é uma das tarefas mais ingratas. Estou acostumado a dormir tarde e acordar tarde, mas por aqui o toque de alvorada é antes mesmo do sol nascer para levantarmos acampamento e pegarmos a estrada aproveitando ainda os primeiros raios de luz do dia. Não raro, quando coloco a cabeça para fora da barraca já não há nenhuma outra em pé ao meu redor.

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Começar o dia com um pneu furado ainda no acampamento também é uma situação frustrante — os minutos que se perde remendando a câmara é um tempo que você poderia aproveitar conversando com a população local, tirando fotos ou simplesmente contemplando a paisagem.

Passei por isso três manhãs consecutivas, o que me fez levantar a hipótese de que há alguma versão africana do Saci Pererê, que fura seu pneu durante a madrugada. No total, foram 15 furos desde o início da viagem.

O calor, até agora, se mostrou o maior inimigo dos ciclistas. O termômetro do ciclocomputador de um dos participantes chegou a apontar a temperatura ambiente de 47°C – ainda que não se possa confiar na precisão, certamente o calor ultrapassou a marca dos 40°C, dando a sensação de você vai derreter enquanto pedala no deserto.

O corpo não chega a suar – o calor é tão intenso que o suor evapora instantaneamente, não dando tempo para o mecanismo natural de resfriamento funcionar adequadamente. Para contornar a situação é preciso usar boné, filtro solar e beber litros e mais litros de água – é possível sorver, sem muito esforço, um litro em apenas uma talagada.

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Particularmente, tive apenas um momento mais crítico com quadro de início de desidratação e hipoglicemia (falta de açúcar no sangue). Ainda no Sudão, quando atravessávamos o Deserto de Núbis, acabei não me alimentando adequadamente pela manhã – normalmente, não tenho fome quando acordo — e também relaxei um pouco na ingestão de líquidos durante o dia.

No meio da tarde, em uma parada em uma das vilas locais, desci da bicicleta cambaleando, com uma sensação de fraqueza e tremedeira e deitei no chão, exausto, para recuperar o fôlego. Foi então que a ciclista da Nova Zelândia Anne Cook, que é enfermeira, percebeu o quadro e veio me ajudar.

Ela molhou minha testa e nuca e comprou uma lata de abacaxi em conserva e pediu para que eu bebesse toda a calda, para repor o líquido e as energias perdidas. Demorei quase meia hora para me recompor, mas consegui seguir em frente e completar o dia pedalando.

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Outra etapa bastante crítica foi o trecho off-road até atingirmos a fronteira entre o Sudão e Etiópia. Foram três dias em estradas secundárias de terra. A opção para pedalar era a de escolher entre a areia fofa – que pode provocar quedas e exige o dobro de esforço – ou as chamadas “costelas de vaca”, que tornam a pedalada um verdadeiro tormento.

No meu caso, entretanto, a parte off-road foi a que mais gostei até agora. Gosto de desafio de pedalar na terra, com a concentração totalmente focada na estrada, segurando para não derrapar a roda traseira da bicicleta e contornando buracos, poças, troncos e rebanhos de gado e cabras. Minha bicicleta é uma mountain-bike, com aro 29, um verdadeiro “jipe” capaz de encarar esse tipo de terreno com certa facilidade.

Além disso, o trajeto passou por vilas esquecidas no interior do Sudão, em aldeias sem luz elétrica ou água encanada, em que a população vive em cabanas de tijolo de barro e teto de palha, tendo como fonte de subsistência os cabritos e as cabeças de gado que conseguem criar.

Foi neste cenário que fui tocado pela primeira vez o espírito do continente africano. O engraçado foi que, no segundo dia de terreno off-road, cheguei ao acampamento com um sorriso no rosto, tomado por um misto de êxtase e alegria que aumentava a cada pedalada por estar vivendo essa experiência única e conhecendo, de bicicleta, locais tão especiais no coração deste continente mágico. Ao mesmo tempo, nove ciclistas literalmente tombaram de exaustão e precisaram de atendimento médico.

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Atrás do caminhão de apoio foi montado um hospital de campanha. A maioria apresentava quadro de desidratação severa e insolação. Mike, um norte-americano de 1,90 metro e mais de 100 quilos, desmaiou bem na minha frente e precisou tomar soro na veia para se recuperar.

Já na Etiópia, de volta ao asfalto, tivemos outro grande desafio: escalar, em apenas um dia, mais de 2,5 mil metros das lendárias montanhas de Simien, onde, segundo a bíblia, teria vivido a Rainha de Sabá.

O trecho de mais de 30 quilômetro de aclive é feito em marcha levíssima, a cerca de seis quilômetros por hora – praticamente a velocidade de uma caminhada. O que significa que você pedala, pedala, e praticamente não sai do lugar. Some-se a isso outro desafio: as crianças, que não se contentam apenas em dizer “hello”, mas querem tocar em você, segurar a bicicleta – uma ciclista chegou a cair e torcer o tornozelo ao ser puxada por uma criança. Alguns simplesmente se atiram na sua frente e, não raro, algumas acabam sendo agressivas, tacando pedras ou pedaços de pau nos ciclistas.

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O colega italiano Marco Panebianco adaptou uma expressão de seu país e sempre que vê alguém em alguma situação de dificuldade diz, com bom humor: “E você, o que pensava? Que viria à África pentear bonecas?”. Outra expressão comum em momentos de dificuldade é “Isso aqui é África! Não é a Disneilândia!”. E não é mesmo…