| Foto:
CARREGANDO :)

Por Antonio Carlos Morasutti*

Dizem que o bacana da vida é poder olhar para trás e com muito orgulho dizer: “Valeu a pena! Faria tudo de novo”. Participar de uma prova ciclística centenária, da qual praticamente todos os participantes, independentemente da sua posição de chegada, sairam vitoriosos e puderam levar para casa o delicioso sabor da conquista, foi algo muito especial e extremamente gratificante. Experiência única, possibilitada pelo espírito randonneur do Paris Brest Paris (PBP) e também pelo fato de cada participante poder estabelecer o seu objetivo pessoal a ser alcançado na prova.

Publicidade

O espírito guerreiro de cada ciclista precisou ser incorporado para enfrentar as mais adversas situações, com muita persistência e resistência, que em muitos momentos levaram ao limite fisico e mental. As adversidades se apresentaram para cada participante com graduações diferentes, desde um simples problema mecânico até o fator psicológico com todos os medos e fantasmas que a prova traz.

Estratégias diferentes foram adotadas para que cada um realizasse o seu sonho e escrevesse o seu nome no PBP, mas o objetivo maior nunca deixou de ser comum e coletivo: terminar a prova dentro do tempo escolhido e no prazo máximo de 90 horas estabelecido pela organização.

Neste sentido, o Paris Brest Paris 2011 foi o palco perfeito para que todos pudessem exercitar este espírito guerreiro e se tornassem efetivamente os heróis de suas histórias através de muito esforço e superação. O cenário foi idealizado com extrema maestria, perfeito desde os dias que antecederam a prova, passando pela vistoria das bikes, até o momento de cruzar a linha de chegada e de imediato poder ver as fotos do audacioso desafio concluído.

Como em qualquer grande espetáculo, o palco foi preparado para uma bela festa na largada, com muita empolgação, música e alegria. No ar um misto de ansiedade e de expectativa pelo que viria pela frente nos 1.230 quilômetros a serem pedalados.

Chegado o momento esperado, todos a postos, muita adrenalina, mãos suando, corações batendo forte, milhares de guerreiros, dos mais diversos paises e nacionalidades, prontos para partir. Ao término da contagem regressiva e ao som de uma buzina, partimos em blocos como que seguindo uma procissão por um caminho muito bem definido e sinalizado, que dispensava qualquer mapa ou orientação.

Publicidade

Pedaladas e mais pedaladas. O tempo voava, a prova avançava e a prevista dispersão natural acontecia. A alegria e a empolgação dos primeiros quilômetros eram substituídas por um quase silêncio, que podia ser entendido como um sinal do primeiro cansaço ou apenas o desejo de contemplar a belíssima paisagem, que aliada à invejável infraestrutura da prova e do país, nos fazia pensar no quanto ainda temos a fazer em nosso país, principalmente no quesito respeito aos ciclistas.

Mais pedaladas e a constatação que o ponto forte, o mais marcante da prova, seria o espetáculo apresentado pelos expectadores, pelas pessoas que acompanhavam e apoiavam a prova ao longo do percurso, nas estradas e nas cidades, de dia e de noite, sob o sol e a chuva, com enorme entusiamo e muito carinho.

Não importava a posição em que o ciclista se encontrava na prova, se estava bem ou esgotado. A admiração e o respeito eram demonstrados pelo desafio assumido e pelo esforço dispendido por tantas horas seguidas. Tratados como heróis, recebíamos palavras de apoio (allez), aplausos simples ou calorosos, músicas cantadas ou tocadas e até o oferecimento de bolo com café, acompanhados de um largo sorriso e muita gentileza. Em troca, apenas a sugestão de um cartão postal a ser enviado no futuro.

A integração da prova, que acontece de 4 em 4 anos, com as comunidades locais era extremamente harmoniosa, química perfeita que gerava energia para recarregar nossas baterias, trazendo novas forças para que cada um pudesse dar o melhor de si na busca de seu objetivo. Passar por aquelas pequenas cidades, que a princípio pareciam todas iguais mas que na sequência se revelavam cheias de sutilezas, nos contagiava e enchia de emoções, especialmente naquelas em que éramos recebidos com banda de música ou com um solitário saxofone.

Estar no meio daquela legião de estrangeiros das mais diversas nacionalidades, em pequenos ou grandes grupos, cada um mostrando com muito orgulho na camisa ou no peito o seu país de origem, dispensava a fala de qualquer lingua estrangeira para pedalar juntos, pois o ritmo era determinado pelo girar do pedal e pela sincronização das trocas de marchas.

Publicidade

Acompanhar um pelotão no meio da noite andando mais forte, com toda a tensão e atenção requerida, e a minha bike rangendo alto foi simplesmente sensacional. Esse sabor se repetiu inúmeras vezes, no sol e na chuva, no seco e no molhado, na reta, na subida e na descida. Não tínhamos escolha do que vinha pela frente. Uma subida não era apenas mais uma subida, mas a certeza de encontrar algo novo, que podia ser uma nova paisagem, outra pequena cidade, mais pessoas encorajadoras ou somente uma outra subida que postergava a nossa recompensa.

Os pontos de controle da prova eram extremamente bem organizados, mas devido ao grande número de participantes gastávamos mais tempo do que o planejado. A compensação vinha na fartura de comida para alimentar o corpo e a alma. A visão dos ciclistas guerreiros nos pontos de controle, se alimentando ou apenas aliviando as dores e o cansaço, sentados, deitados ou encostados num canto, não era nada agradável. Retratava o ser humano na sua forma mais natural e primitiva, com toda a sua constrangedora vulnerabilidade.

Passaporte carimbado, chip registrado, pomada passada, corpo e mente alimentados, autoestima e confiança restauradas, a prova seguia o roteiro traçado com a mesma impecável organização e o tremendo apoio da população. Porém, a esta altura da prova e após tanta quilometragem percorrida, os guerreiros já não eram mais os mesmos que partiram.

Fora a cabeça pesada e o corpo exausto, carregavam neste momento muitas outras experiências. Da alegria da partida aos percalços do caminho, da incerteza na largada e agora a quase certeza da chegada, tudo isto fazia o pensamento rever as razões que nos motivaram a estar naquela empreitada. Inevitável não olhar para trás e rever o propósito de estar lá, o esforço da preparação, os audaxes brevetados, as dificuldades no percurso da prova, que foram diferentes para cada participante, os quilômetros já percorridos e os que viriam pela frente… E este pensamento só fortalecia e deixava mais próxima a chegada.

Publicidade

Ao mesmo tempo, saber que a chegada estava próxima parecia que a deixava mais longe. A sensação era de que um número muito maior de pedaladas era necessário para fazer um mesmo quilômetro quando do início da jornada, devido ao corpo já cansado e à ansiedade natural de enxergar a reta final. Pernas quase anestesiadas, corpo devastado, estômago corroído, fel na boca e cabeca zoando pelas horas não dormidas. Adrenalina a mil, a única vontade era de chegar. A voz que vinha de dentro era para manter a motivação para as últimas pedaladas da superação.

Ao finalmente vislumbrar o portal da chegada, brotam fortes emoções e mil pensamentos, entre eles a certeza da tarefa cumprida, da conquista, da superação, do autoconhecimento e do sonho realizado. Forças agora somente para comemorar a façanha.

Cruzo a linha de chegada 80 horas depois da largada e, em meio a tantos pensamentos, surge o sentimento de privilégio por ter pedalado com meu irmão. Devido à distância geográfica e aos rumos que nossas vidas tomaram, só tinhamos pedalados juntos uma vez. E agora, lado a lado por tantas horas, como grandes amigos em busca de um mesmo ideal, é inesquecível. Obrigado, meu irmão. Valeu! Na próxima também vou de speed e você não vai precisar esperar nem se perder.

Poeira tirada, banho tomado, fica a experiência e o aprendizado de uma grande aventura que todos, inclusive aqueles que ficaram pelo caminho, carregarão para sempre. O desejo agora é que este aprendizado, somado ao espírito randonneur, possa nos unir ainda mais pelo pedal.

Que que os emails trocados após a prova sejam apenas um pequeno mal-entendido e também um aprendizado. Que vestindo ou não a camisa do Brasil, mas carregando no peito o orgulho de ser brasileiro, possamos deixar nossas marcas no PBP, não só dos pneus nas estradas francesas, mas também do companheirismo e da amizade.

Publicidade

E que na bagagem de volta possamos sempre trazer o delicioso sabor da conquista e, se formos questionados sobre a experiência, que possamos responder com muito orgulho: “Valeu muito a pena! Faria tudo de novo”.

*Antonio Carlos Morassutti é ciclista e diretor de RH e Assuntos Corporativos da Volvo do Brasil (carlos.morassutti@volvo.com)

Leia mais
Sem autorização, etapa do Audax no Paraná será cancelada
________________________o>°o
Pedale com o blog
Siga as atualizações pelo Twitter.