Se a promulgação da Constituição da República acontecesse em 2019 e os constituintes agissem movidos pelo espírito que hoje impera na Câmara dos Deputados, certamente o belíssimo discurso de Ulysses Guimarães não teria acontecido. Em vez do tom de voz moderado – com um único grito para dizer que “temos ódio e nojo à ditadura” – teríamos 11 minutos de fala estridente, interpelada a cada trinta segundos por provocações e gracejos frustrados. Ao fundo, parlamentares empunhariam cartazes provocativos, com mensagens a suas bases eleitorais e fariam selfies e lives sem fim.
Passados seis meses da posse dos atuais parlamentares, há um episódio que ilustra bem o zeitgeist da 56ª Legislatura e suas consequências para a vida pública: a ida do ministro da Justiça, Sergio Moro, para prestar esclarecimento a três comissões da Câmara sobre conversas privadas da força tarefa da Lava Jato que foram publicadas pelo The Intercept.
Num evento como esse, é natural que haja embates entre as diferentes teses. Entretanto, após oito horas de sabatina, a única informação substancial foi o modo como o ministro se esquivou de responder enfaticamente se há ou não o persecutório pedido de investigação do COAF sobre as movimentações financeiras de Glenn Greenwald, do Intercept. De resto, qualquer intervenção de parlamentares – da base ou da oposição – que tentasse apelar a uma retórica racional era logo debelada por gritos e manifestações de outros colegas.
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Um dos pontos mais fundos desse poço foi quando o deputado paranaense Boca Aberta (Pros) entregou um troféu ao ministro. Não pela defesa de Moro, mas pelo fato de um deputado dedicar o tempo que tirou para se preparar para a sabatina para maquinar esse tipo de ação. Funcionou para Boca Aberta, que no dia seguinte estava no ranking das notícias mais lidas em diversos portais do país. Mas não funcionou para a comissão e nem para o parlamento – que, lembremos, no mesmo momento discutia em uma sala ao lado a reforma da Previdência.
Na constante algaravia em que vive a Câmara, escuta-se cada vez menos o que dizem os parlamentares, que, na ânsia de aparecer, roubam a atenção do espectador político com piadas, provocações e berros desprovidos de substância. Eu já escrevi neste espaço sobre como ter dito que o ministro Paulo Guedes age como “tchutchuca” diante de banqueiros e “tigrão” com os trabalhadores foi, do ponto de vista da visibilidade pública, o ponto alto da carreira do deputado Zeca Dirceu (PT). É claro que isso não é invenção da 56ª Legislatura, muito menos de Boca Aberta ou Zeca Dirceu, mas os celulares e as redes sociais, indispensáveis no atual Congresso, construíram rapidamente um número muito maior de palcos para o grotesco.
Desculpem a intimidade, mas isso faz lembrar uma quase-bronca que levei da minha mãe aos quinze anos. Ao vestir um terno alugado para ir à festa de alguma amiga que debutava, achei que poderia me destacar se em vez de sapatos usasse tênis All Star preto. Minha mãe, a voz do bom-senso, logo advertiu: quando todo mundo quer ser diferente, fica todo mundo igual. No fim, acatei o conselho e era um dos poucos piás de sapato entre os amigos de All Star.
Voltando à esfera pública, esse modo de fazer política tem o efeito perverso de calar os moderados. Não é todo mundo, afinal, que se submete a esse vale tudo por uns minutos de atenção. Diante disso, a narrativa que se consolida é a dos estridentes, para quem em qualquer dos assuntos que tramitam pela Câmara só existem duas posições possíveis: a inequivocamente correta e a absolutamente incorreta, onde se alinharão os traidores da pátria.
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Esse tipo de abordagem é prejudicial para o debate público, especialmente em temas complexos como o da reforma da Previdência. O próprio presidente Jair Bolsonaro, autor da proposta de reforma, tropeça na língua do Jair Bolsonaro deputado no caso da reforma. Quando era o parlamentar das soluções simples (e erradas!) para problemas complexos, Bolsonaro rechaçava a necessidade de reforma; hoje, diante das responsabilidades do cargo, é obrigado a, constrangido, contemporizar.
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