Toda vez que ficamos sabendo exatamente a quantidade de informações pessoais que governos e empresas coletam sobre nós há, na sequência, um escândalo político, midiático e também um inevitável temor íntimo a respeito dos limites dessa vigilância.
Foi assim quando Edward Snowden, que prestava serviços à Agência Nacional de Segurança dos Estados Unidos (NSA, na sigla em inglês), revelou, em 2015, que o governo americano monitorava as comunicações privadas de cidadãos na internet e chegava ao absurdo de grampear as ligações telefônicas da ex-presidente Dilma Rousseff (PT) até no avião presidencial. E foi assim também em março desse ano quando o Facebook admitiu o vazamento de dados pessoais de usuários da rede social.
Na esteira dos escândalos costuma vir a pressão por normas mais rigorosas de proteção da privacidade e das informações pessoais. Um reflexo desse movimento foi a dura sabatina feita por senadores americanos com Mark Zuckerberg alguns dias após a notícia do vazamento dos dados do Facebook.
No Brasil, as autoridades parecem menos sensíveis a esse tema. Um exemplo é a Muralha Digital, o novo programa de segurança da prefeitura de Curitiba que foi lançado na segunda-feira (2). Com cerimônia recheada de assinaturas, fotos e declarações entusiasmadas, o prefeito anunciou um convênio com o Banco Regional de Desenvolvimento do Extremo Sul para financiar todo um aparato de vigilância que sustenta a nova política de segurança do município.
Pelo que foi divulgado pela prefeitura, além da integração entre câmeras e radares e da atualização das cerca de 950 câmeras existentes, serão instaladas 600 novas câmeras, com reconhecimento facial e leitura de placas. Os novos equipamentos, diz o Executivo, serão colocados em locais estratégicos, a partir do cruzamento de informações com índices criminais.
Apesar de ter sido divulgada na segunda linha do quinto parágrafo de um texto enviado à imprensa, a informação de que a prefeitura instalará 600 câmeras capazes de fazerem reconhecimento facial não é desprezível.
Há uma extensa discussão que acompanha esse avanço da vigilância e da captação e uso de dados pessoais dos cidadãos que está sendo ignorada pela prefeitura. Isso porque esse tipo de intervenção tem consequências e ignorá-las, como faz a prefeitura, não as detém.
Entre os efeitos da vigilância para os quais alertam especialistas de diversas áreas estão a supressão das liberdades individuais, a estigmatização de indivíduos e grupos sociais e a perseguição política.
Do ponto de vista da vigilância, suponhamos que essa tecnologia já estivesse disponível durante as manifestações de junho de 2013. Em meio àquela guerra retórica, poucas coisas seriam mais úteis a um suposto governante mal-intencionado que identificar remotamente os manifestantes, vasculhar a vida pregressa de cada um e a partir daí construir um discurso para minar a legitimidade dos movimentos.
Já a respeito das dificuldades que o poder público tem de garantir a integridade e o sigilo das informações pessoais, pensemos, por exemplo nos sucessivos vazamentos de bancos de dados públicos, como por exemplo, os do INSS, que transformam aposentados em presas de vorazes vendedores de crédito consignado.
É possível que a prefeitura ignore as consequências da Muralha Digital por não ter submetido o projeto a nenhum tipo de debate. Nem os vereadores foram formalmente consultados pelo Executivo*. À Câmara caberá apenas aprovar ou não o empréstimo da prefeitura com o BRDE, já com o projeto formulado e apresentado ao banco de fomento.
É claro que a Muralha Digital não é essencialmente um projeto de vigilância dos cidadãos. Há por trás da ideia um necessário e louvável esforço de combate à violência em Curitiba, mas não informar à população sobre as consequências dessa escolha nem convidá-la a sopesar efeitos e possíveis benefícios da medida é tratar como corriqueiro e inofensivo algo que não o é.
O medo justificou a vigilância norte americana sob o pretexto de combate ao terrorismo. O mesmo pode acontecer aqui e a violência urbana talvez nos faça aceitar e concordar com a política da prefeitura. O que não é razoável é que uma medida que afeta substancialmente o modo como vivemos em Curitiba hoje seja definida apenas nos gabinetes da secretaria de Defesa Social – nosso enjambre para municipalizar a segurança pública.
* Na segunda-feira (9), a prefeitura de Curitiba enviou para a Câmara Municipal um projeto que regulamenta o videomonitoramento na cidade. Veja mais informações aqui.
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