Em maio de 2014, o então secretário de Infraestrutura e Logística do Paraná, Pepe Richa – irmão do ex-governador Beto Richa (PSDB) – foi a Maringá conversar com servidores e autoridades locais sobre a duplicação da PR-323, que liga as cidades de Paiçandu e Francisco Alves, passando por Cianorte e Umuarama, no Noroeste do estado. Na agência de notícias do governo, o encontro foi registrado com entusiasmado proselitismo: “Paraná terá rodovia com padrões internacionais”. Àquela altura, a promessa era de que as obras começariam no mês seguinte, em junho de 2014.
Mais de quatro anos após esse encontro, nenhum dos 216 quilômetros foi duplicado nem foram construídos os 19 viadutos, 22 trincheiras, 13 passarelas e nove pontes que estavam previstos no projeto. Isso aconteceu porque a Odebrecht, empresa que capitaneou o consórcio vencedor da licitação, não conseguiu os recursos necessários para a obra, porque estava envolvida nos escândalos de corrupção revelados pela Operação Lava Jato.
Sem a duplicação, a PR-323 é hoje a rodovia que apresenta o maior índice de acidentes e o maior número de mortes no Paraná. Essa informação não é nova. Em 2014, em um desses encontros com moradores da região Noroeste, o então diretor do DER – e hoje delator da Lava Jato – Nelson Leal Junior já dizia isso.
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Se nada foi construído a partir desse projeto, houve o que tenha sido destruído. O grupo político do ex-governador Beto Richa foi devastado por denúncias de corrupção envolvendo, entre outros casos, a duplicação da rodovia. O que a Lava Jato sustenta é que a Odebrecht repassou R$ 4 milhões via caixa 2 à campanha de reeleição de Richa para que o governo demovesse outras empresas de participarem da licitação das obras.
O ocaso político de Richa, entretanto, é a menor das consequências desse caso. As constantes mortes na rodovia e o entrave ao desenvolvimento da região por causa da “Rodovia da Morte” são o preço mais caro.
A tragédia humana
Entre janeiro de 2010 e junho de 2018, 376 pessoas morreram na rodovia e 3.940 ficaram feridas, segundo dados da Polícia Rodoviária Estadual que levam em conta apenas mortes no local do acidente. Quem mantém os olhos atentos sobre esses dados é André Melatti, procurador do Ministério Público do Trabalho em Umuarama. Em 2016 ele instaurou um procedimento investigativo com o objetivo de gerar medidas de prevenção de acidentes com os motoristas profissionais que trafegam no trecho. O processo segue tramitando.
Melatti integra uma articulação da sociedade civil da região Noroeste chamada Vítimas do Descaso. O grupo é formado pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), por entidades representativas do setor produtivo e, entre outros, pela Igreja Católica. Uma das principais ações da igreja é realizar uma missa anual em memória dos mortos em acidentes na 323. A homenagem acontece no pátio de um posto de gasolina às margens da rodovia e, segundo o Padre Carlos Alberto de Figueiredo, da Diocese de Umuarama, o número de fiéis presentes cresce a cada ano, na medida em que cresce o número de vítimas e famílias afetadas.
Segundo Figueiredo, a missa acontece desde 2006, mas ganhou relevância após um trágico acidente que aconteceu na rodovia em 2016 e matou 21 pessoas. Esse fato foi um marco para a articulação regional e intensificou a pressão e a organização da sociedade civil. No dia 31 de outubro daquele ano, um ônibus da prefeitura de Altônia que levava pacientes para atendimento médico em Umuarama colidiu com um caminhão bitrem carregado de leite. Segundo a perícia, o caminhão invadiu a pista contrária e bateu de frente com o ônibus, um acidente típico de estradas com pista simples.
As características econômicas da região intensificam o fluxo de veículos e, consequentemente, o risco de acidentes. Segundo prefeito de Umuarama, Celso Pozzobom (PSC), a cidade é referência regional em serviços de saúde e educação. Por isso, é grande o movimento de pessoas de outras cidades que usam a 323 para chegar às aulas e buscar tratamento médico na cidade.
Além dos dramas pessoais, os acidentes na rodovia também causam prejuízo financeiro. Uma conta feita pela Federação das Indústrias do Paraná (Fiep) mostra que em 2017 esses custos chegaram a R$ 48,6 milhões, considerando os gastos com hospital, ambulância, seguros, remoção e conserto de veículos, além da perda de produção dos acidentados.
O estrangulamento econômico
A PR-323 é a principal ligação dos municípios do Noroeste ao Anel de Integração do Paraná – a malha de rodovias de 2,5 mil km que interliga todo o estado. Os principais polos econômicos da região são Umuarama, com destaque para a produção moveleira e pecuária; e Cianorte, um dos principais polos têxteis do país. A Fiep e os representes do setor produtivo apontam a situação da rodovia como maior entrave ao desenvolvimento da economia local.
Pelos cálculos da Fiep, o frete na PR-323 tende a ser 41% mais caro que em rodovias em estado considerado ótimo. Uma redução de 1% nesse custo, que poderia ser obtida com a melhoria da via, poderia gerar uma redução de R$ 125 milhões nos gastos do empresariado da região.
“O produto industrializado de Umuarama não tem mais preço competitivo no mercado. Se você comparar um produto daqui com Maringá, o custo de Maringá é muito menor. A rodovia, no estado em que ela está, exige que o caminhão passe por manutenção praticamente a cada viagem feita”, relata Orlando Luiz Santos, presidente da Associação Comercial, Industrial e Agrícola de Umuarama.
Segundo Santos, essa situação está causando um êxodo de indústrias locais. Ele dá exemplos. A Umaflex, indústria de colchões e estofados fundada em Umuarama na década de 1990 expandiu recentemente sua produção com a construção de uma nova planta, mas em vez de manter a operação na região, instalou o novo parque em Conchal (SP). Outra empresa da cidade que optou por crescer longe de Umuarama foi a Hellen Estofados, que está instalando uma fábrica em Aguaí (SP), onde deve investir cerca de R$ 21 milhões.
A infraestrutura precária não afeta apenas os grandes empresários. O engenheiro civil Sergio Frederico, coordenador do grupo Vítimas do Descaso, conta a história de uma pizzaria da cidade que encomenda as caixas para delivery no Rio Grande do Sul. O fabricante, entretanto, não faz as entregas em Umuarama, o que obriga o empresário a fazer viagens regulares a Maringá para buscar as caixas.
As perspectivas
No dia 31 de maio de 2017, como a Odebrecht não conseguiu financiamento para a obra, o Diário Oficial do Estado trouxe a publicação do termo de rescisão da PPP firmada em 2014. Com isso, a duplicação voltou à estaca zero. Segundo o DER, após o distrato foi elaborado um plano de ação com intervenções ao longo dos 216 quilômetros de extensão do corredor rodoviário formado pelas rodovias PR-323, PR-487 e PR-272, entre os municípios de Paiçandu e Francisco Alves.
No último dia 3 de outubro, o DER emitiu a ordem de serviço autorizando o início dos trabalhos em um trecho de 20,7 quilômetros entre Paiçandu e Doutor Camargo. As obras custarão R$ 73,2 milhões e serão pagas pelo governo estadual. Para João Arthur Mohr, consultor de Infraestrutura da Fiep, apesar desse movimento do governo em usar recursos próprios na duplicação, é improvável que o estado tenha dinheiro para bancar toda a obra. Nesse caso, a melhor alternativa seria uma concessão para a iniciativa privada.
Ao contrário do que foi feito na formulação inicial da PPP, Mohr defende que o governo contrate os projetos iniciais de engenharia, e não deixe isso para um Procedimento de Manifestação de Interesse, quando empresas interessadas na obra é que apresentam os projetos.
Em Umuarama, os envolvidos no movimento pela duplicação não se opõem à concessão. Segundo o presidente da OAB de Umuarama, Aldo Henrique Alves, o grupo não tem nenhuma orientação ou exigência em relação a modelagem de financiamento da duplicação. “Nós queremos é que saia”, diz.
O governador eleito, Ratinho Junior (PSD), assinou uma carta de compromisso com as obras. No termo ele se comprometeu a “promover as condições necessárias para a duplicação da PR 323”. Ao longo de sua campanha ele tratou como prioritárias as obras em três rodovias estaduais; a 323; a PR-092, no Norte Pioneiro; e a PR-280, que passa pelas regiões Sudeste e Sul do Paraná.
Projetos foram doados ao governo
Interessada em fazer a duplicação da PR-323, a Odebrecht assumiu o ônus de fazer o projeto da obra. Os levantamentos e projeções de engenharia custaram cerca de R$ 9 milhões – caso a empresa não vencesse a licitação, seria reembolsada pela empreiteira ganhadora. Segundo o DER, a concessionária Rota das Fronteiras tinha a obrigação contratual de elaborar os projetos executivos. Em janeiro de 2017, a Odebrecht deixou a sociedade, cedendo todos os direitos econômicos à TGA Participações. Em junho de 2018, a TGA formalizou a doação dos projetos e estudos para o DER-PR.
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