Sabemos hoje que o nazismo e o comunismo foram duas tiranias gêmeas do século 20. Mas persiste ainda em alguns crentes a ideia bizarra de que o comunismo não pode ser comparado ao nazismo. Existe um ideal qualquer, alegadamente superior, que não se confunde com as vulgaridades de Hitler e seus gângsteres.
Sou insuspeito de simpatias marxistas-leninistas. Mas, por incrível que pareça, os crentes têm uma certa razão, embora não pelos motivos que imaginam. Em termos práticos, e sobretudo da perspectiva das vítimas, o sofrimento e a morte serão sempre o sofrimento e a morte. A beleza do ideal é uma fraca consolação no momento do último suspiro.
Mas ajuda, sobretudo no marketing posterior a 1945. Há quem diga que a alegada superioridade do comunismo sobre o nazismo está no fato, comprovadamente histórico, de o comunismo ter ajudado a derrotar Hitler. Seria uma explicação perfeitamente válida se, em 1939, Stalin e Hitler não tivessem assinado um pacto de não agressão (na verdade, foi um pacto para partilhar a Polônia e estabelecer “esferas de influência” no leste da Europa). Além disso, convém não esquecer que Stalin abasteceu a Wehrmacht durante todo o front ocidental, praticamente até as vésperas da invasão nazista da União Soviética.
O nazismo e o comunismo foram duas tiranias gêmeas do século 20. Mas persiste ainda em alguns crentes a ideia bizarra de que o comunismo não pode ser comparado ao nazismo
Um livro recente, do historiador Ian Johnson, explica os detalhes. Intitula-se, sugestivamente, Faustian Bargain: The Soviet-German Partnership and the Origins of the Second World War – em português, “barganha faustiana: a parceria germano-soviética e as origens da Segunda Guerra Mundial”.
Mas regresso à beleza do ideal. Será isso que salva o comunismo na comparação com o nazismo? É provável. Não serei original a sublinhar a diferença retórica entre os dois totalitarismos (Kolakowski chegou lá primeiro). Mas enquanto o comunismo, no uso e abuso de termos como “igualdade” e “justiça”, ainda se inscreve numa linguagem reconhecidamente judaico-cristã, o nazismo e a sua exaltação neopagã da força e da brutalidade representam um corte com essa melodia – uma “transmutação de valores”, como diria o filósofo. Essa é a razão pela qual a linguagem do nazismo é repulsiva e indefensável – e a linguagem comunista, independentemente das consequências, é tão suave aos nossos ouvidos.
Se dúvidas houvesse sobre essa suavidade, bastaria olhar para Lyuda, a personagem central de Caros Camaradas – Trabalhadores em Luta, o grande filme que eu nunca pensei que Andrei Konchalovsky seria capaz de fazer. Mas fez. Superficialmente, Caros Camaradas retoma um dos tabus que a União Soviética de Nikita Kruschev tentou esconder: o massacre de dezenas de trabalhadores que se revoltaram em Novocherkassk, corria 1962.
E se revoltaram por quê? Pelos motivos mais compreensíveis: comida. O preço da comida. Como exigir mais trabalho na fábrica quando os salários risíveis não permitiam comprar os bens mais básicos? Eis a prova de que o comunismo não precisa de embargos americanos para gerar a miséria do costume.
Lyuda não sofre com esse mal. Ela, funcionária do partido, tem certos privilégios. Como, por exemplo, não agonizar nas filas para comprar a janta. Perante esse estatuto, não admira que Lyuda seja uma implacável defensora do regime. Pelo menos até o momento em que as autoridades soviéticas começam a disparar sobre os manifestantes que exigem melhores condições de vida e a fazê-los desaparecer.
Os crentes no comunismo têm uma infinita capacidade de autoengano
Entre os desaparecidos está a sua filha, Svetka. Lyuda tentará procurá-la nos hospitais, depois na morgue, e finalmente nas sepulturas anônimas dos cemitérios. O filme de Konchalovsky é admirável na recriação dessa cultura de violência e mendacidade que levava um regime a matar o seu povo.
Mas o interesse maior está em Lyuda: uma crente que vira descrente, sem renegar ao ideal. Pelo contrário: o problema da União Soviética, segundo Lyuda, é já não ter Stalin ao leme. É uma conclusão duplamente irônica – e trágica. Primeiro, porque foi Kruschev quem, em célebre discurso de 1956, denunciou os crimes de Stálin. Mas sobretudo porque Lyuda, na sua fantasia reacionária, encarna o que existe de inesgotável na alma do crente: uma infinita capacidade para o autoengano, desde que a retórica do ideal nunca seja contaminada pela evidência da realidade.
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