Cena de “O Som do Silêncio”, da Amazon, filme indicado ao Oscar.| Foto: Pat Saperstein/Divulgação/Amazon
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Minha relação com o cinema é cada vez mais narcísica. A obra? As propriedades objetivas da obra? Cada vez me interessam menos. O que me interessa é ver nela as minhas preocupações e obsessões devidamente tratadas. Eis a minha poética: onanismo e canibalismo em partes iguais, por favor.

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Foi isso que me levou a gostar de Mank, o mais recente filme de David Fincher. Sobre o roteirista Herman Mankiewicz e a sua relação com William Randolph Hearst, confesso que tenho um interesse histórico mínimo. Mas quando aparece no filme a parábola do macaco e do tocador de realejo – o macaco, deslumbrado com as suas macaquices, até pensa que é o tocador de realejo que depende dele –, sei que estou em território pessoal.

Várias vezes me senti o macaco de vários tocadores de realejo. Várias vezes cometi o erro de pensar que o tocador de realejo depende do macaco, e não o contrário. Mas será mesmo um erro? Ou, na boa tradição hegeliana, não será o macaco mais importante que o tocador de realejo?

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Que será de nós quando as fontes habituais de sentido e identidade deixarem de existir?

De William Randolph Hearst falarão os livros de história. Mas Herman Mankiewicz e Orson Welles não serão história. Continuarão vivos enquanto existirem literatos e cinéfilos dispostos a partilhar a vida com eles. Mais ainda: até Hearst viverá, em parte, por causa dos macacos. Cidadão Kane é o seu passaporte para a eternidade e Rosebud, a sua senha de entrada.

O mesmo acontece com outro filme indicado ao Oscar deste ano: O Som do Silêncio. Deixo os méritos estéticos da obra para quem se alimenta apenas de estética. O filme transporta um dos meus terrores mais profundos: que será de nós quando as fontes habituais de sentido e identidade deixarem de existir? O que será de mim?

Penso na velhice. Penso na doença. Penso na cegueira, por exemplo, o maior dos meus fantasmas. Já tive em casa quem tivesse perdido a possibilidade de ler e escrever. “Terei sempre a música”, penso eu, que numa espécie de recuo estratégico tenho escutado cada vez mais música e lido cada vez mais sobre música (agora que penso nisso). Até o meu piano mandei restaurar recentemente. Mas será que sobrevivemos? Teremos uma vida mutilada ou uma segunda vida? Ou nenhuma vida?

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É assim que encontramos Ruben (notável Riz Ahmed, indicado também ao Oscar), baterista de heavy metal que perde o principal instrumento da sua existência: a audição. Como o assunto é heavy metal, haverá quem veja no castigo o inevitável dedo divino. Eu próprio, só com a sequência inicial, pensei em marcar consulta no otorrino.

Mas o interesse não está na catástrofe pessoal. Está na resposta à catástrofe: recolhido por uma instituição cristã, Ruben terá de encontrar esse sentido e essa identidade perdidos. É como retornar à infância para aprender uma nova linguagem – no sentido literal e metafórico. Quando vemos Ruben, um adulto, entre as crianças surdas da escola, é como se alguém tivesse puxado o filme da sua vida até o início, para lhe dar um outro início.

Mas não é apenas a linguagem (gestual) que Ruben tem de aprender. É também uma outra forma de estar e de ser. A tarefa que o chefe da instituição lhe dá é apenas esta: todos os dias, ser capaz de se sentar numa sala vazia, apenas com papel e lapiseira.

É impossível não lembrar Pascal aqui, para quem todos os problemas da humanidade se devem ao fato de os homens não conseguirem estar sozinhos no quarto. Não há maior solidão do que o medo da solidão. E não há maior miséria do que agarrar os destroços do passado para tentar ressuscitar esse cadáver – no caso de Ruben, uma ilusão distorcida, ruidosa, insuportável.

Com a primeira sequência do filme, pensamos em marcar consulta no otorrino. Com a última, é como se um novo sentido nos tivesse sido concedido. Ou, para usar a palavra apropriada, uma nova graça.

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No seu poema épico, John Milton retrata o inferno como uma “escuridão visível”. Lembro sempre esse terrível oxímoro quando penso nos meus fantasmas futuros. Mas quem sabe? Talvez a escuridão, às vezes, seja mesmo visível. Talvez a escuridão seja uma outra forma de ver o que a luz às vezes esconde.