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Boas notícias: Vladimir Putin, frustrado com os avanços militares russos na Ucrânia, vestiu o traje militar e, segundo as informações disponíveis, já comanda as tropas no terreno, como se fosse um coronel. É a atitude típica do autocrata: isolado do mundo e sem vozes discordantes ao redor, ele pensa que sabe tudo e pode tudo. Até comandar exércitos.
A coisa cheira a Hitler na Segunda Guerra Mundial. Mas não é preciso ir tão longe: um século atrás, um antecessor de Putin, Nicolau II, também pensava que sabia mais do que os seus generais. Em 1915, a Rússia já tinha perdido 1 milhão de homens na guerra. O czar, que nunca se notabilizou pela inteligência, decidiu chamar para si todas as decisões militares na frente de batalha. No ano seguinte, e depois da fracassada ofensiva contra a Áustria, a Rússia tinha mais 1 milhão de mortos para juntar à conta. Com uma diferença: dessa vez, as derrotas eram diretamente imputadas ao czar, o que contribuiu para o clima pré-revolucionário que estourou no ano seguinte.
Será que o mesmo vai suceder na Rússia agora? Espero que sim. Não apenas pela barbárie da invasão; mas porque Putin pode servir de exemplo para todos aqueles que ainda acreditam no mito do líder forte.
Putin é o típico líder autoritário que só faz sucesso em cabeças fracas
Anos atrás, o historiador Archie Brown escreveu um colossal livro (The Myth of the Strong Leader, ou “o mito do líder forte”) em que se ocupa precisamente desse delírio. Para os pobres de espírito, os líderes fortes – tradução: impetuosos, dominadores, autoritários – são casos de sucesso admirável. Isso porque esses mesmos pobres de espírito pensam que a forma colegial de governar, típica das democracias – tradução: escutando os especialistas, respondendo perante o parlamento, partilhando informação com o público –, é mais débil e menos afortunada.
Archie Brown vai demolindo esses mitos, um a um, com um conhecimento histórico que arrepia. Sim, existem virtudes da liderança que são inestimáveis: a integridade, a inteligência, a racionalidade, a abertura à crítica, a boa memória, a coragem, a empatia e a energia. Mas o que determina uma boa liderança é o processo de decisão. As democracias produzem melhores resultados do que as ditaduras porque os seus líderes não fazem o que querem: eles escutam os colegas, a mídia e a oposição; são responsáveis perante outras instituições independentes; e, claro, preocupam-se com os humores dos eleitores.
Isso não significa que líderes democráticos não podem errar feio. Mas isso acontece, precisamente, quando os líderes são menos colegiais nas suas decisões. Ironicamente, o contrário também acontece com os líderes das ditaduras: se eles forem mais colegiais na tomada de decisões – exemplo: a União Soviética pós-Stalin –, o tamanho do estrago costuma ser, apesar de tudo, menor.
Mas é no palco internacional que o mito do líder forte desaba com estrondo. Archie Brown, sem surpresa, lembra os casos de Hitler e seu fantoche, Mussolini, que arrastaram os respectivos países para o desastre. Stalin também não escapa. A União Soviética derrotou Hitler? Fato. Mas as melhores páginas do livro são uma análise minuciosa da relutância do tirano em crer que Hitler acabaria por invadir a União Soviética, contra todas as evidências. A sabedoria de Stalin era tão asfixiante que Lavrenti Beria, para não ficar mal na foto, acabou por ceder. “Eu e o meu povo, Iosif Vissarionovich [Stalin], gravamos firmemente na nossa memória a vossa sábia conclusão: Hitler não nos vai atacar em 1941”, escreveu o chefe da NKVD, polícia secreta stalinista, na véspera da invasão.
O que é válido para tiranos é válido para democratas. Os erros de Chamberlain (na política de apaziguamento face a Hitler), de Anthony Eden (no fiasco do Suez) ou de Tony Blair (na invasão do Iraque) nascem no mesmo charco: a ilusão da onisciência e a hostilidade a qualquer conselho ou crítica especializada. Os casos de Eden e Blair são especialmente irônicos porque a decisão de derrubar o presidente Nasser no Egito (de Eden) ou Saddam Hussein no Iraque (de Blair) era justificada pelos próprios como a melhor forma de não repetirem os erros de Chamberlain, um premiê “mole”. Pobrezinhos: na ambição de serem “duros”, limitaram-se a repetir a mesma cegueira de Chamberlain, conclui laconicamente Archie Brown.
Países civilizados não pedem líderes fortes; pedem líderes competentes, racionais e que podem ser responsabilizados e punidos pelas suas falhas. Infelizmente para os russos, para os ucranianos e para o mundo, Putin é o típico líder “forte” que só faz sucesso em cabeças fracas.
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos