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João Pereira Coutinho

João Pereira Coutinho

Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa

A guerra dos tronos

Militantes do Talibã em Cabul, em 16 de agosto. (Foto: Stringer/EFE/EPA)

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O Talibã está de volta aos comandos e eu pressinto alguns festejos por aí. A visão da América, da poderosa América, humilhada e escorraçada de países subdesenvolvidos é sempre uma alegria para certos espíritos. Curiosamente, também senti isso no ar, 20 anos atrás, quando as Torres Gêmeas foram derrubadas em Nova York.

Nota pessoal: no escritório onde escrevo, tenho na parede a primeira página da Folha de S.Paulo do dia 12 de setembro de 2001 com o título: “EUA sofrem maior ataque da história”. Por masoquismo? Não. Para me lembrar de como a minha inocência política acabou. E, com ela, as férias que o “fim da história” trouxe à minha geração, a mais abençoada do século 20 porque herdeira da terceira vaga de democratização de que falava Samuel Huntington.

Mas também houve quem festejasse. A frase “a América teve o que merecia” fez sucesso em certas cavernas – e não estou falando das cavernas do Afeganistão, onde a Al-Qaeda planeava os seus ataques, e que em boa hora foram arrasadas pela aviação americana.

Se é mau ter os Estados Unidos como “polícia do mundo”, o que acontece quando o polícia vai para casa?

Exatamente como o Talibã deveria ter sido arrasado agora. Leio sobre o avanço imparável dos fanáticos sobre Cabul e todas as matérias confluem no mesmo ponto: Joe Biden retirou as tropas sem dar cobertura aérea ao exército afegão para enfrentar o inimigo. Dizer que isso é um crime e uma traição é um eufemismo pornográfico.

Acontece que não há nada para festejar aqui. Deixemos de lado, por motivos caridosos, a população jovem do país, que cresceu nesses últimos 20 anos com liberdades impensáveis durante o regime do anterior Talibã. Que vida terão? Meus pensamentos vão sobretudo para as mulheres porque, na escala do meu feminismo, o “patriarcado” que elas vão sofrer transforma o patriarcado ocidental numa espécie de poema de amor às donzelas.

A questão é mais funda: se é mau ter os Estados Unidos como “polícia do mundo”, o que acontece quando o polícia vai para casa? Robert Kagan respondeu com um título apropriado: The Jungle Grows Back (“a selva cresce novamente”).

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Discordo de Kagan em muita coisa. Discordo, por exemplo, da fantasia dele de que era possível fazer do Afeganistão ou do Iraque uma espécie de Alemanha ou Japão, take 2. A realidade tribal do Oriente Médio não tem comparação com a homogeneidade étnica da Alemanha ou do Japão depois da Segunda Guerra Mundial. Punir o Talibã e ajudar os afegãos moderados a um mínimo de decência já estava bom.

Mas concordo com ele num ponto: sempre que a América cede à tentação isolacionista, é preciso perguntar quem ocupará o trono vazio. A história já ofereceu uma lição dolorosa: nas décadas de 1920 e 1930, reinava no país o mesmo slogan (“America First”) que define as cabeças de Washington no século 21. Os problemas da Europa eram os problemas da Europa – distantes, brutais, talvez insolúveis. Que interessava a Liga das Nações? Que interessavam as violações permanentes ao Tratado de Versalhes que os nazistas começaram a praticar em 1933?

Quando a América se retrai, a democracia a nível global sofre o mesmo destino

Azar: o fato de a América se desinteressar do mundo não significa que o mundo se desinteressa da América. Roosevelt resistiu à guerra – até acontecer Pearl Harbor. Bill Clinton, anos depois, resistiu em destruir as bases da Al-Qaeda no Afeganistão – era a “síndrome do Vietnã” assombrando o bicho – até acontecer o 11 de setembro.

Mas o isolacionismo não é apenas autodestrutivo para a segurança do país e dos seus aliados. Quando a América se retrai, a democracia a nível global sofre o mesmo destino. Como lembra Robert Kagan, com razão, o número de democracias aumentou após a vitória dos Aliados na Primeira Guerra. Despencou quando as democracias, incluindo a americana, se fecharam sobre elas próprias. O fascismo ocupou esse trono vazio nas décadas de 1920 e 1930.

Festejar a derrota americana e o regresso do Talibã é acreditar que o Oriente Médio é como Las Vegas: o que acontece lá fica lá. Duvido

Depois da Segunda Guerra, com a vitória dos Aliados sobre o nazifascismo, houve nova vaga democrática nos países que não seguiram a opção soviética. E a democracia voltou em força, em fins da década de 1970, quando Moscou foi perdendo o seu sex appeal – e, sobretudo, depois de 1989, com o fim da Guerra Fria.

Hoje, estamos em plena regressão democrática e em pleno isolacionismo americano. Quem acha que a eleição de Jair Bolsonaro não tem nada a ver com o fenômeno Donald Trump não entende o espírito do tempo.

Parafraseando Robert Kagan, festejar a derrota americana e o regresso do Talibã é acreditar que o Oriente Médio é como Las Vegas: o que acontece lá fica lá. Duvido. E, nos entretantos, vou arranjando espaço para uma segunda capa da Folha na parede do meu escritório.

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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