Camille Paglia, a decana das feministas americanas, enfrenta contestação séria na universidade de Filadélfia, onde é professora há 35 anos. Informa a revista Spiked que os alunos organizaram uma petição na qual exigem a remoção de Paglia – ou a sua substituição por uma “pessoa queer de cor”. Motivo?
Paglia concedeu uma entrevista à própria Spiked que, segundo os alunos, não respeita nem os estudantes transgêneros nem as vítimas de crimes sexuais.
Não tinha visto a entrevista. Vi agora. Aplaudi de pé a inteligência ferina de Paglia. Não, não concordo com tudo. Mas Paglia, como qualquer pensadora independente, tem um talento único para formular hipóteses que rasgam ideias feitas.
Para começar, o feminismo de hoje é uma caricatura do feminismo que abanou consciências nas décadas de 1960 e 1970. E, a propósito disso, Paglia conta uma história pessoal: quando chegou à universidade em 1969, os dormitórios femininos fechavam as portas às 23h. (Os masculinos não tinham horários.)
Feministas como Paglia contestavam esse paternalismo dos machos (e de muitas fêmeas) que, em nome da castidade alheia, tratavam as mulheres como walking victims (vítimas andantes). Liberdade significava libertação: de todas as estruturas repressivas que impediam as mulheres de enfrentar o mundo com a cabeça erguida.
Hoje, Paglia contesta o “feminismo vitimário” que, paradoxalmente, reproduz os clichês do machismo paternalista: as mulheres são seres frágeis, vulneráveis, ingênuos, que um mundo predatório quer atacar e destruir. Como explicar essa regressão?
Hipótese: o novo feminismo é o típico produto de uma educação burguesa, protegida, fechada, que olha para a realidade em volta com desconfiança, temor, até histeria.
Atenção: Paglia não fala de crimes – para isso há polícia, tribunais, cadeia. Fala de algo mais sutil: a tentativa de transformar a universidade, o trabalho, o espaço público numa espécie de sala de estar familiar onde existem todos os confortos, todas as seguranças, todas as certezas da infância – e nenhuma das ambiguidades da vida adulta.
A esse respeito, a autora estabelece uma diferença notável entre a forma como as mulheres das classes trabalhadoras respondem às cantadas dos homens na rua e a paralisia que assalta as mulheres burguesas na mesma situação. Até o tom de voz é diferente – temerário, nas primeiras; temeroso, nas segundas.
O mesmo vale para os dramas da “identidade de gênero”. Uma vez mais, Paglia não nega que existem transtornos de gênero com forte caução genética que merecem respeito e respostas.
O que Paglia questiona é se muitos desses dramas não têm causas mais vastas (psicológicas, culturais etc.) que revelam, sobretudo, uma “hiper-autoconsciência” – quem sou eu? O que sou eu? – que se transforma numa forma neurótica de autoabsorção.
Ponto de ordem: não tenho a sabedoria necessária para responder às interrogações de Paglia. Talvez por não perder demasiado tempo com nenhum dos temas.
Sobre o “novo feminismo”, admito que exista essa regressão moral que transforma todas as mulheres em vítimas potenciais – e todos os homens em criminosos potenciais. Abomino esse clima inquisitorial e paranoico. Mas também admito que, sem esse “novo feminismo”, alguns temas de justiça básica – igualdade salarial entre os sexos, violência doméstica etc. – nunca teriam a atenção devida.
Sobre a realidade trans, a minha costela libertária segreda-me ao ouvido: live and let live, vive e deixa viver. É-me indiferente o que as pessoas são, pensam que são ou desejam ser. Mas não me é indiferente que algumas pessoas queiram impor aos outros o que eles devem dizer, pensar ou escrever. Viver e deixar viver funciona para ambos os lados.
A petição dos estudantes não é um documento a favor da tolerância ou em defesa das minorias. É uma atitude censória que, ironicamente, comprova algumas das ideias de Paglia. Protegidos desde o berço por uma parentalidade asfixiante e provinciana, muitos estudantes universitários não aguentam a exuberância do pensamento livre. E transformam em ameaça épica o que é apenas um ponto de vista.
Será isso um sintoma de decadência civilizacional? A forma como problemas inexistentes se convertem em catástrofes, ao mesmo tempo que ignoramos os bárbaros reais que conspiram para nos destruir?
Bato essas linhas com as imagens do Sri Lanka na TV. A resposta é evidente.