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Agora que 2020 caminha para o fim, faz parte da boa etiqueta deplorar o ano com todos os insultos possíveis e imaginários. O festival começa nas grandes publicações e termina nas pequenas, com as redes sociais das celebridades em clara vantagem.
Em teoria, eu entendo: só aplaude a pandemia quem perdeu um dos parafusos.
Mas, na prática, há algo de farsa nesse cortejo de vitupérios, uma espécie de mimetismo que é puro espetáculo sem nenhuma verdade por trás.
Um ano de desconfortos não é o mesmo que um ano de tragédias. Cada caso é um caso. Cada casa é uma casa. Há gradações de infelicidade e dor. Só aceito insultos genuínos de quem genuinamente perdeu algo.
E, no entanto, viver numa "sociedade do espetáculo", como lhe chamou Guy Debord, consiste em representar o tempo todo, falsificando a experiência humana com poses, clichês e imagens.
Se a ideia é expressar solenidade, a coisa vira paródia no mesmo instante.
Nada de novo: durante os piores momentos da pandemia, o mundo assistiu, abismado, a multimilionários da música ou do cinema chorando as suas lágrimas pela realidade do confinamento.
Sofriam, os débeis, porque não podiam frequentar os mesmos restaurantes nem viajar para os mesmos hotéis. Os empregados desses restaurantes ou hotéis também choravam, imagino eu, embora as respectivas contas bancárias habitassem um outro planeta.
É esse planeta que vejo todos os dias, nas minhas caminhadas pelo bairro. Encontro lojas fechadas que não vão abrir mais. Famílias no desemprego. Conhecidos que falharam exames de rotina, tratamentos, cirurgias, porque os hospitais não conseguiram responder a todas as emergências. Para alguns deles, esse descaso teve um preço elevadíssimo.
Mas tremendamente brutal foi o destino de um vizinho, mais ou menos da minha idade, que perdeu o pai e o irmão para o infame bicho no espaço de um mês. Sempre que o vejo, baixo a cabeça com vergonha da minha própria sorte. Que lhe posso dizer? Que 2020 foi ruim?
Lamentar os meus incômodos, para além de ser algo pornográfico, seria uma forma de canibalizar o espaço da dor dos outros.
O ano foi meigo comigo. No momento em que escrevo, ainda estou vivo. Não estou doente (acho). A minha saúde mental, que nunca foi famosa, pelo menos não piorou grandemente.
Além disso, a família foi poupada da tragédia e, em junho, até aumentou. Também não perdi o emprego e continuei a exercê-lo – escrevendo, ensinando – com a normalidade possível.
E há uma vacina prometida para 2021 porque habito na Europa, não em terras de pobreza extrema onde só haverá vacina, se houver, em 2023 ou 2024.
No fundo, dou graças por ser Mel Gibson e não Jesus Cristo. Confuso, leitor? Não esteja. Devo essa imagem a Zadie Smith, que publicou o melhor livro sobre 2020 que li até ao momento.
São seis ensaios, sob o título Intimations, em que a escritora partilha as "iluminações" que a pandemia lhe ofereceu.
Num deles, Zadie Smith analisa a subjetividade dos sofrimentos, que são sempre absolutos para quem os vive.
O solteiro lamenta a sua solidão como se não houvesse maior solidão. O casado lamenta a ausência de solidão e trocaria o seu reino doméstico por um minuto de silêncio.
Mas uma fotografia que virou meme durante a peste põe as coisas em perspetiva. Vemos Mel Gibson, sentado na cadeira de diretor, enquanto conversa no set com Jesus Cristo (interpretado pelo ator Jim Caviezel em A Paixão de Cristo, longa lançado em 2004).
Cristo surge coberto de sangue, com uma coroa de espinhos, escutando as indicações do diretor. Na legenda, lê-se: "Explicando aos meus amigos com filhos pequenos como tem sido o meu isolamento solitário"
É uma boa piada. De fato, há sempre alguém pior que nós. De fato, é melhor ser Mel Gibson que Jesus Cristo.
E, por incrível que pareça, mesmo aqueles que se julgam Cristo nem imaginam a sorte que têm por não serem um dos ladrões crucificados a seu lado. Precisamente aquele que não subiu ao paraíso.
O ano caminha para o fim. Não deixará saudades. Mas quando o relógio der as 12 badaladas, pergunte primeiro se tem alguma coroa de espinhos no topo da cabeça.
Se não houver um pingo de sangue, tenha pelo menos um pingo de decência para murmurar baixinho: "Adeus, 2020, e muito obrigado".
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