Janeiro, 1919. Nascia a Lei Seca nos Estados Unidos. Falo da ratificação da 18.ª emenda constitucional, que tinha como propósito acabar com a produção, o transporte e a comercialização de bebidas alcoólicas no país. Não resultou. Nem o vício foi domado, nem a criminalidade foi vencida. Em 1933, uma nova emenda (a 21.ª) colocou um ponto final na experiência.
Passaram cem anos. Hoje, olhamos para a Lei Seca com curiosidade arqueológica. Um erro. O espírito da Lei Seca, ao contrário da própria lei, sobreviveu nas nossas democracias. O nome desse espírito? Paternalismo.
A grande diferença é que as justificações paternalistas abandonaram a “moralidade pública” e optaram agora pela “saúde pública”. Mudança cosmética, não mais. Um livro recente ajuda a entender o fenômeno. O título é Killjoys: A Critique of Paternalism, o autor é Christopher Snowdon e por “paternalismo” entende o autor a tendência das democracias ocidentais de produzirem legislação para protegerem as pessoas delas próprias.
Isso implica influenciar o que elas comem e bebem (pela força dos impostos) ou até determinar como elas devem dirigir (com cinto de segurança) ou andar de moto (com capacete). Para o paternalismo, a função do poder é coagir as pessoas a escolherem certos caminhos “para o seu próprio bem”.
O filósofo John Stuart Mill (1806–1873) ficaria horrorizado com o cenário. Relembrando o seu “princípio do dano”, que constitui a base de uma sociedade liberal, o único motivo que legitima o Estado a interferir na liberdade de alguém é para evitar danos a terceiros. Salvar a alma (ou a saúde) do indivíduo não basta. Exceto para quem tem uma concepção fascista do poder – e “fascista” no sentido preciso do termo. Mussolini, por exemplo, defendia que a liberdade fascista era superior à liberdade das democracias burguesas porque o Estado fascista cuidava de cada indivíduo.
Pois bem: “cuidar do indivíduo” é o mantra moderno. Em nome de quê? Da saúde, claro. Para repetir o clichê, haverá coisa mais importante do que a saúde? Curiosamente, há – e Christopher Snowdon é primoroso na argumentação antipaternalista. Para certos indivíduos, o prazer pode ser mais importante que os dois anos extras de velhice funcional. Donde, que legitimidade tem o Estado para determinar qual o valor mais importante para a minha vida, sobretudo quando a minha conduta não causa dano a terceiros?
Por outro lado, se aceitarmos que a saúde e a longevidade suplantam qualquer outra consideração subjetiva, não se entende por que motivo o Estado se limita a combater o fumo, o sal, o açúcar ou as gorduras. Por razões lógicas, deveria proibir também qualquer atividade humana que pusesse em risco a minha sobrevivência.
Mas o paternalismo não é apenas uma violação grosseira da minha autonomia. O paternalismo moderno deturpa a própria linguagem científica. Snowdon dá como exemplo o uso e o abuso da palavra “epidemia”. A obesidade é apenas o caso mais glosado. Acontece que a obesidade não é uma epidemia, ou seja, não é contagiosa nem representa perigo para os outros. Um gordo não me torna gordo da mesma forma que um portador de ebola me pode contaminar com o vírus. Em sentido rigoroso, a obesidade é endêmica, não epidêmica. Apresentá-la como uma “epidemia” é um abuso histérico e moralista que compara o obeso a um qualquer portador de doença contagiosa. É, em suma, um estigma e uma forma de desumanização.
Por último, o paternalismo médico incorre numa violação deontológica severa: propõe-se “curar” uma população sem o consentimento dela. Eu sou livre para aceitar ou recusar certos tratamentos médicos. Mas não sou livre quando o Estado decide que tipo de comidas, bebidas ou divertimentos eu posso consumir. A tirania do bem não deixa de ser uma forma de tirania.
No século 19, confrontado com a possibilidade de se proibir o comércio do álcool, John Stuart Mill afirmava: as pessoas não são crianças nem selvagens. São pessoas e devem ser respeitadas como tais – seres imperfeitos, às vezes viciosos, mas senhores do seu destino. Os Estados Unidos da Lei Seca não escutaram os argumentos de Stuart Mill e produziram um fiasco econômico, social e criminal que deveria oferecer algumas lições à descendência.
Mas a descendência não aprende. Ironicamente, a ambição humana de produzir um mundo perfeito é tão forte como os vícios que o paternalismo persegue sem descanso.
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