Publicidade retirada pela Justiça exibia uma bandeira do Brasil ao lado do símbolo do comunismo e fazia um comparativo entre diversos tópicos.| Foto: Divulgação/Twitter @amandamoraes500
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Tem uma certa graça: o Brasil em estado febril com a eleição presidencial e eu aqui, ao longe, lendo o livro de Francisco Bosco, O diálogo possível: Por uma reconstrução do debate político brasileiro (Todavia), um tratado de racionalidade e moderação sobre o presente e o futuro do país. Pareço um maluco, no meio da tempestade, segurando uma vela e protegendo a sua chama frágil. Há destinos piores.

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Mas regresso ao livro. Como é bom ver que existe pensamento esclarecido no Brasil! O livro de Bosco é, tão só, uma tentativa de limpar as palavras que se usam e abusam no debate político e apontar um caminho para fora do lamaçal. Sobre a limpeza, o autor tem razão: a construção do mundo começa com a linguagem. Como imaginar um futuro partilhado para o Brasil quando esquerda e direita constroem imagens do inimigo (no sentido schmittiano do termo) que, para além de deformantes, são sobretudo malignas?

Não vale a pena perder tempo sobre o significado real, histórico, filosófico, de “comunismo” e “fascismo”. A bibliografia sobre o assunto, que poucos leem, é vasta e profícua. Mas quem pensa que o Brasil, depois desse primeiro turno, se divide entre comunistas e fascistas está obviamente num estado de alienação tal que só a psiquiatria pode resolver.

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Como imaginar um futuro partilhado para o Brasil quando esquerda e direita constroem imagens do inimigo (no sentido schmittiano do termo) que, para além de deformantes, são sobretudo malignas?

Eis a primeira premissa de Bosco: baixar a temperatura do debate e explicar como a polarização de hoje é um produto da irresponsabilidade institucional de PSDB e PT. Os governos de ambos sempre foram marcados pela continuidade, ainda que distintos no modus operandi: o PSDB implementando as políticas públicas e fiscais que dariam corpo real às aspirações da Constituição de 1988 (simplificando, um Estado de bem-estar social) e o PT aprofundando e ampliando essas políticas.

Fatalmente, a retórica cedo começou a deformar a realidade. O PSDB, considerado “neoliberal” pelo PT; e o PT, a partir da primeira eleição de Lula, pintado com as cores do radicalismo. A corrupção dos anos posteriores completou a demonização da esquerda, mesmo que essa mancha não tenha prerrogativa ideológica, como lembra Bosco.

O resultado é esse ambiente de ficção em que sempre encontrei o país nesses últimos 20 anos: amigos de direita dizendo que o Brasil seria a próxima Cuba e amigos de esquerda declarando, com náusea, que metade dos seus concidadãos usava uma suástica no braço. Seria para rir se as consequências não fossem tão dramáticas.

Francisco Bosco quer menos dramatismo e, na melhor parte do livro, explica o que entende pelo seu centro vital. Não, não é o centro pragmático em que todos conciliam os seus interesses. Também não é o Centrão fisiológico, patrimonialista e invariavelmente corrupto que só a disfuncionalidade do sistema político brasileiro permite. É um centro onde duas concepções de liberdade podem ser acomodadas, tal como Isaiah Berlin recomendava. Por um lado, a liberdade negativa que permite aos indivíduos agirem (ou não) sem serem intencionalmente coagidos pelo Estado; por outro, a liberdade positiva, que capacita esses mesmos indivíduos a exercerem essa liberdade.

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Fins incompatíveis? Sim, se levados até sua expressão máxima, tal como defendem os fanáticos. Nas sociedades reais em que vivemos, o que existe são compromissos. Isso significa, em linguagem prosaica, que talvez o Brasil deva ser mais de direita para baixar a sua carga tributária alta e os seus gastos públicos imensos; e também mais de esquerda, ao combater a desigualdade brutal, os seus serviços públicos ineficientes e a sua tributação regressiva. Pois é, ninguém disse que era fácil.

Talvez o Brasil deva ser mais de direita para baixar a sua carga tributária alta e os seus gastos públicos imensos; e também mais de esquerda, ao combater a desigualdade brutal, os seus serviços públicos ineficientes e a sua tributação regressiva

No fundo, percorrendo o trajeto normal dos liberais modernos (ou sociais, ou progressistas, ou de centro-esquerda), Francisco Bosco entende que o espírito do liberalismo não se encerra na oposição ao abuso e ao privilégio políticos (sua função clássica, digamos, e fim primeiro da democracia liberal e representativa). É preciso ir mais além, trazendo para o Brasil do século 21 o que a Europa implementou no século 20: direitos sociais de cidadania efetivamente universais.

“O intelecto humano é impotente contra a vida pulsional”, dizia Freud, citado pelo autor. Mas também acrescentava: “A voz do intelecto é baixa, mas ela não descansa enquanto não receber atenção”. Que este livro possa receber a atenção que merece depois de 30 de outubro. Quando chegar a hora de limpar os destroços.

Infográficos Gazeta do Povo[Clique para ampliar]
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