Quando li as memórias de Woody Allen, Apropos of Nothing, consegui identificar duas partes no livro. A primeira, divertida e nostálgica, acompanhava a infância no Brooklyn, a juventude nos clubes de comédia, os primeiros filmes e o encontro com Mia Farrow. A segunda, sombria e amarga, começava no momento em que Mia, depois de descobrir a relação de Allen com Soon-Yi, acusava o diretor de ter molestado a filha adotiva de ambos, Dylan.
Nesse momento, e até ao fim do livro, há um brilho que se perde e que não volta mais. As últimas páginas são um hino à misantropia, mas sem o humor que os melhores misantropos costumam partilhar com a espécie humana. Deixem-me em paz, parecia escrever Allen, diretamente do seu bunker.
Não há nada mais triste do que testemunhar o eclipse de um grande criador
Pensei se o mesmo raciocínio poderia ser aplicado aos filmes. Confirmei. Até 1992, data das acusações, são obras-primas sucessivas. A partir de 1992, algo esmorece também. Ainda existem cometas, como Desconstruindo Harry ou Meia-Noite em Paris. Mas os filmes são sombras do que eram – e, alguns, meras repetições do que foram.
O que não nos mata nos torna mais fortes? Só mesmo um filósofo alemão para dizer uma barbaridade dessas. E só mesmo um criador mutilado poderia filmar o medíocre Rifkin’s Festival. Será o último filme de Woody Allen? Não sei. Mas talvez seja o último filme para mim: não há nada mais triste do que testemunhar o eclipse de um grande criador.
Para começar, não deve ser fácil a Woody Allen conseguir dinheiro e atores como antigamente. O seu nome, para todos os efeitos, foi destruído nos últimos anos com a repetição das acusações de 1992. O tribunal ilibou Allen na época? Não chega: no tribunal da opinião pública, o homem foi condenado e “cancelado”. O documentário da HBO sobre o assunto foi apenas a lápide sobre a sua sepultura.
É por isso que, em Rifkin’s Festival, os atores americanos são todos de segundo time. Ponto prévio: gosto de Wallace Shawn ou Gina Gershon, sem dúvida. Mas será preciso lembrar os atores de primeiro time que tradicionalmente se passeavam nos filmes de Woody Allen, dispostos a ganhar muito menos só para terem um filme do diretor no currículo? Hoje, esse currículo é cadastro e vários deles vieram publicamente lamentar as colaborações com Allen.
Como no seu livro de memórias, Woody Allen já só quer ser deixado em paz
Rifkin’s Festival é uma comédia sem comédia que se limita a revisitar velhos temas em piloto automático: Mort Rifkin (Wallace Shawn), um professor de cinema na terceira idade, acompanha a sua mais jovem mulher a San Sebastián, na Espanha, por ocasião do festival de cinema. A mulher, de nome Sue (Gina Gershon), é publicista de um diretor francês, Philippe (Louis Garrel), e cedo nos apercebemos que Sue e Philippe acabarão nos braços um do outro.
Mort vai assistindo ao inevitável e, hipocondríaco como é, procura ajuda especializada para as suas crises de ansiedade. Encontra uma médica espanhola disposta a auscultar o seu coração e, claro, a escutar as suas lamentações. É o início de uma espécie de amizade – e, para Mort, um pretexto para revisitar a sua vida de fracassos e ilusões em flashbacks que são referências paródicas de Woody Allen aos velhos mestres do seu panteão – de Fellini a Bergman, de Truffaut a Buñuel.
Tais evocações soam gratuitas e absurdas. Como soam gratuitas e absurdas as introspeções de Mort, a quilômetros de distância de Memórias, o filme de 1980 que já deambulava pelo mesmo território. No final, abandonamos Mort com o mesmo tédio e cansaço com que ele olha para a vida.
Como no seu livro de memórias, Woody Allen já só quer ser deixado em paz. Respeito esse pedido. E agradeço também a galeria ilustre de histórias e personagens que o diretor nos deixou em testamento. O sorriso nervoso de Annie Hall (em Noivo Neurótico, Noiva Nervosa). Os dramas de Zelig (em Zelig). As meditações do hipocondríaco Mickey (em Hannah e suas Irmãs). As autodescobertas dolorosas de Marion (Gena Rowlands no assombroso A Outra). O crime sem castigo de Judah (em Crimes e Pecados). Na hora da despedida, exigir mais talvez seja sacrilégio.
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