Houve um tempo em que a vida sexual de terceiros me interessava. Foi na adolescência e tomava a forma de uma pergunta: será que os outros se divertem mais do que eu? A resposta, lamento dizê-lo, era quase sempre afirmativa, exceto se incluirmos escoteiros, fãs de quadrinhos da Marvel e Testemunhas de Jeová na sacola. Mas então cresci, fui vivendo a minha lista de triunfos e vexames e a pergunta deixou de interessar. Exceto, claro, quando é madrugada e os meus vizinhos resolvem despachar o assunto nos 15 segundos mais agonizantes das minhas noites insones.
Fatalmente, o mundo é dos adolescentes. Basta consultar qualquer jornal, qualquer revista, qualquer programa de tevê para deparar com gente obcecada com a inclinação simbólica dos órgãos genitais. Os órgãos deles e dos outros. Não é saudável. Sexo é como andar de bicicleta: o que interessa é a prática, não a teoria.
A exigência de Marks para que Styles saia do armário me parece tão totalitária como a exigência dos moralistas jurássicos para que os gays permaneçam no armário
Um exemplo dessa imaturidade apareceu nas páginas do The New York Times pela pena de Anna Marks, editora-assistente da seção de Opinião do jornal. Segundo parece, Marks não gosta das ambiguidades de Harry Styles, um cantor pop que usa e abusa de simbologia queer. Na descrição da autora, Styles aparece em palco com a bandeira do arco-íris e usa flores na lapela, como Oscar Wilde. Mas não abre o jogo sobre a sua “identidade”.
Existem duas hipóteses na cabeça estreita de Anna Marks: Styles é hétero e assume, por razões comerciais, uma identidade queer; ou, então, Styles não consegue sair do armário e a sua arte é uma forma de exteriorizar seus esqueletos. Para Anna Marks, seria cinismo acreditar na primeira hipótese, razão pela qual opta pela segunda. Mas também aqui a cabeça estreita de Marks produz uma nova pérola: se Styles está fechado no armário, ele tem a obrigação de sair de lá.
O texto é uma peça cômica sobre as contradições do discurso progressista em matéria sexual. A primeira dessas contradições assenta na própria ideia de fluidez: por que motivo o gênero pode ser fluido, mas todo o resto deve ser rígido e perfeitamente identificável? Mistério. Se é possível viajar pelas preferências de gênero, não há nenhum motivo para estabelecer fronteiras em outros domínios da experiência humana.
A própria noção de “apropriação cultural” é vazia de sentido: minha subjetividade é minha única mestra – e quem são os outros para negar meus sentimentos? Hoje, sinto-me português; amanhã, brasileiro; depois de amanhã, sinto-me mexicano ou samoano. E, no caso de Styles, é perfeitamente legítimo que ele se sinta hétero em casa e queer nos palcos (ou vice-versa).
Por outro lado, nenhuma pessoa civilizada nega a importância de lutar por uma sociedade que não humilhe ou discrimine a diferença. Mas a exigência de Marks para que Styles saia do armário me parece tão totalitária como a exigência dos moralistas jurássicos para que os gays permaneçam no armário. Uns e outros, na sua imensa boçalidade, querem impor a terceiros o que é uma decisão íntima e pessoal.
O fato de Styles ser uma “figura pública” não justifica essa impertinência, nem mesmo em nome da luta contra a homofobia. Antes de ser “figura pública” ou bandeira hipotética de qualquer causa, Styles tem certos direitos como pessoa. Entre eles, o direito à reserva sobre a sua vida privada. Até porque a explicação para a ambiguidade de Styles pode ser mais simples do que parece, embora mais complexa para espíritos provincianos: a história da cultura é um longo cortejo de experimentações de gênero.
As contradições do discurso progressista em matéria sexual são cômicas
Do mito de Hermafrodito às representações andróginas da pintura renascentista, dos dandies do século 19 às performances de David Bowie (a óbvia inspiração de Styles), exemplos não faltam. Mesmo a cidade onde me encontro, Nápoles, era famosa pelos femminielli – rapazes que se vestiam de mulheres desde a mais tenra idade e que se assumiam como um terceiro gênero. Eram socialmente aceites e, mais ainda, vistos como portadores de boa fortuna.
O mundo não começou hoje, nem ontem, nem anteontem. À luz da história, Styles não passa de uma imitação de uma imitação de uma imitação. E Anna Marks também: o desconforto que ela sente com as ambiguidades do cantor, exigindo uma definição identitária rigorosa e inequívoca, apenas imita o desconforto dos nossos antepassados, quando se confrontavam com qualquer ameaça aos estereótipos de gênero. Eis a ironia final: tão progressistas são, e tão reacionários se revelam.
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