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João Pereira Coutinho

João Pereira Coutinho

Archie Bunker não mora mais aqui

Ilustração da cadeira do personagem de Archie Bunker no seriado Tudo em Família (Foto: Fabio Abreu/Thapcom)

Quando nasceu o bebê real de Harry e Meghan, esperei pelo nome. Archie. Aplaudi. Pode não ter o mesmo peso histórico de um Henry, de um Albert, de um George. Mas como não gostar de Archie, sobretudo quando somos cinéfilos com memória?

Não, não falo de Archibald Leach, o nome verdadeiro de Cary Grant. Nem sequer falo de outros Archies que foram imediatamente lembrados pela imprensa britânica para dar algum pedigree à criança.

Falou-se de Archie Moore, famoso pugilista e treinador de Muhammad Ali. Falou-se de Archie Shepp, compositor de jazz e grande saxofonista. E até se falou, Deus meu, de Archie Roosevelt, o terceiro filho do presidente americano Theodore Roosevelt.

Que tristeza. No meio desse festival de Archies, serei o único a lembrar, com uma lágrima de nostalgia, o incomparável Archie Bunker?

Os leitores mais jovens talvez não conheçam o personagem. Mas houve uma série de tevê, na década de 1970, em que Archie deslumbrou as plateias. Deslumbrar, aqui, deve ser tomado com um grão de sal. Tudo em Família, eis o título. E que família!

Basicamente, temos o pai (Archie), a mãe (Edith), a filha (Gloria) e o genro (Mike). Mas é o pai, um operário e ex-veterano de guerra, quem ocupa o centro do palco com as suas opiniões. Porque Archie é só opinião: sobre política, relações internacionais, raças, religião, comunistas, arte contemporânea, gays. E também sobre a mulher, a filha e o genro. E os vizinhos. E a América em peso.

Sentado no seu sofá – uma peça de mobília que está hoje no Museu Nacional de História Americana, em Washington –, Archie faz jus ao nome e vive num bunker (mental). Teme a mudança, qualquer mudança. Teme o desconhecido, qualquer desconhecido. E vê em qualquer sinal de modernidade um prenúncio de apocalipse.

Em mãos menos talentosas, o boneco seria insuportável – uma espécie de ministra Damares, digamos. Mas Norman Lear (o criador) e Carroll O'Connor (o ator) transformam Archie Bunker numa das personagens mais cômicas e ricas da televisão americana.

O humor vem do confronto entre as suas opiniões – uma mistura de preconceito, paranoia e medo – com as opiniões da família e do mundo ao redor. Rimos de Archie porque a ausência de um superego sempre foi cômica em qualquer pessoa. Ironicamente, para quem não gosta das transgressões da contracultura, Archie é o mais transgressivo de todos ao verbalizar o absurdo e o inominável.

Mas Archie não é pura imobilidade. No confronto com a decência da mulher (que ele considera burra), o progressismo da filha (que ele considera ingênua) e, sobretudo, nas sessões de esgrima ideológica com o genro (Mike, um polonês esquerdista que ainda acredita nas vantagens da educação universitária), Archie vai mudando a sua cabeça – lentamente, sim, como se fosse uma placa geológica.

Aliás, os momentos mais notáveis da série ocorrem quando Archie concede a razão e o afeto a Edith, uma mulher com certas limitações cognitivas, é um fato, mas com uma espécie de horror pelos extremismos que a eleva a um patamar superior. Edith é a estrutura de toda a família, e Archie, cabeça-dura, sabe disso. Recentemente, revi todos os episódios em DVD. E imaginei como seria hoje um personagem como Archie Bunker.

Essa dúvida, admito, não faz qualquer sentido. Primeiro, porque uma série tão politicamente incorreta como Tudo em Família seria material radioativo para qualquer estúdio atualmente.

Segundo sei, o criador, Norman Lear, agora com 95 anos, tenciona filmar uma nova versão de Tudo em Família para a ABC com os atores Woody Harrelson e Marisa Tomei nos papéis de Archie e Edith. Mas será um episódio único, não uma temporada inteira, o que mostra bem a regressão de liberdade criativa que a cultura popular sofreu nas últimas décadas.

Além disso, todos sabemos que os Archies do nosso tempo não estão sentados nos seus sofás, esgrimindo ideias com quem pensa de forma diferente. Estão todos nas redes sociais, falando uns para os outros e reforçando as suas crenças sob o aplauso do fanatismo de grupo. O humor de ontem deu lugar à fúria ressentida de hoje. E a possibilidade de mudança, por pequena que seja, é vista como uma traição à causa.

Que o bebê real tenha o nome de Archie, eis uma escolha que seria incompreensível em 1970, mas que é louvável em 2019. No meio da nossa gritaria odiosa, Archie Bunker é quase um cavalheiro.

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