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João Pereira Coutinho

João Pereira Coutinho

As memórias de Woody Allen

O diretor Woody Allen em entrevista coletiva na Itália, em julho de 2019. (Foto: Miguel Medina/AFP)

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Conheci Woody Allen aos 15 anos. Um primo, precoce e pedante, emprestou-me Noivo Neurótico, Noiva Nervosa e disse, com ares de profeta, “vai e assiste”. Eu fui e assisti. O que aconteceu a seguir foi bastante semelhante ao que aconteceu no Mar Vermelho quando Moisés trouxe de volta os judeus do Egito. A cabeça se abriu, e a minha vida mudou. Não por razões artísticas, entenda. O caso é pessoal. Até aos 15, eu era Gregor Samsa depois de acordar de um sonho intranquilo.

Depois de Noivo Neurótico, Noiva Nervosa, eu continuei Gregor Samsa. Mas com bastante orgulho nos meus hábitos de rastejante. Ali estava um exemplar neurótico, misantropo, solitário, pessimista e paranoico que parecia funcionar no mundo real. Qual era a minha desculpa? Não tinha desculpa. Se comecei a escrever, foi porque li primeiro um dos melhores escritores americanos da nossa era. O fato de ele só escrever filmes e contos era secundário.

Depois de ler “Apropos of Nothing”, eu não apostaria minhas fichas em Mia Farrow

Dizer que assisti a todos os filmes de Woody Allen a partir desse momento seria um eufemismo. Eu decorei os roteiros e, sem um pingo de vergonha, passei a usar certas frases em contexto romântico. Lembro uma vez, teria uns 17 ou 18 anos, quando segredei ao ouvido de uma moça adorável “você é a resposta de Deus a Jó”. A frase é de Manhattan, é claro, quando Woody elogia Mariel Hemingway. Deus pode fazer coisas terríveis, mas também fez aquele rosto. Não teve o efeito desejado. Ela me olhou, como se olhasse um acidente na rodovia, e perguntou “quem é essa Jó, alguma amiguinha sua?”

É com esse historial que me aproximei de Apropos of Nothing (que título!), as memórias de Woody Allen finalmente publicadas. Escrevo “finalmente” porque o filme (de terror) é conhecido: o livro seria lançado pela Hachette, mas, após pressão da intelligentsia liberal, que sempre gostou de censurar os hereges por seus alegados crimes, a editora cancelou o lançamento. O livro acabou por sair pela Arcade, uma editora com certa tradição “conservadora” (Cioran, Dershowitz, Beckett) e que publicou a autobiografia “por uma questão de princípio”. Fez bem. Se não fosse a coragem da Arcade, eu teria ido pessoalmente a Nova York para assaltar os escritórios da Hachette. E atear fogo neles.

O livro, em rigor, não é um livro. São dois. Ou, melhor dizendo, existe uma vida antes das acusações de Mia Farrow de que Woody molestara Dylan, a filha de ambos; e existe outra vida depois desse acontecimento sísmico. De tal forma que o tom, o estilo, a musicalidade das memórias se altera. É como se alguém tivesse começado com Sidney Bechet e, a meio do percurso, mudasse a trilha sonora para a Sinfonia nº 3 de Penderecki.

Ao som de Bechet, as memórias de Woody Allen são um prazer literário comparável a Mark Twain ou S. J. Perelman. As observações sobre os pais; o tédio de morte com a escola; a descoberta do cinema na infância e da própria cidade de Nova York; o sonho em ser mágico; as primeiras piadas profissionais – tudo isso possui uma força onírica e nostálgica que diverte e comove pela sua candura.

Como divertem e comovem as relações com as mulheres, em particular com Louise Lasser, o primeiro grande amor. Pelo menos, antes de a doença bipolar dela ter afundado o barco. O momento em que Woody nos descreve a casa dos pais de Louise, impecavelmente decorada, em contraste com o quarto da própria Louise (“abrimos a porta e vemos Hiroshima”), é tão hilariante que eu desconfio que desloquei uma costela, abafando o riso para não acordar ninguém.

Mas é então que os risos se apagam e Penderecki se instala. O ano é 1992. Woody Allen se apaixona por Soon-Yi, a filha adotiva de Mia Farrow e do maestro André Previn, então com 21 anos. Estranho? Seria, se o amor fosse um animal previsível. Não é. Se você ler os motivos que aproximaram Woody de Soon-Yi e não sentir uma leve empatia, lamento, o seu coração está morto.

Dizer que assisti a todos os filmes de Woody Allen seria um eufemismo. Eu decorei os roteiros

O que acontece em seguida, poucos meses depois da descoberta da relação, é uma mistura de Kafka com Stephen King. Sim, há mulheres enganadas que reagem de forma insana. Na versão de Woody Allen, Mia Farrow é a própria definição de insanidade. Quem, exceto um monstro, manipularia uma criança de 7 anos para destruir a reputação do pai? E quem, mesmo depois de ver o caso enterrado pela Justiça, exige entrar em mais um filme do ex-companheiro como se nada se tivesse passado?

Fato: jamais saberemos, com certeza absoluta, onde mora a verdade. Se a nossa própria vida, às vezes, é um mistério para nós, o que dizer da vida dos outros? Seja como for, se eu tivesse de apostar as minhas fichas depois de ler Apropos of Nothing, eu não apostaria em Mia Farrow. Mas apostaria sempre no talento de um homem que, à sua maneira, também foi uma resposta de Deus à minha amiguinha Jó.

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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