“Fatos alternativos.” Adoro essa expressão. Pelo menos, desde o momento em que a escutei pela boca tenebrosa da sempre tenebrosa Kellyanne Conway, conselheira política de Donald Trump.
O pretexto, se bem me lembro, era saber quantas pessoas haviam estado na posse de Trump, em Washington. Os jornalistas diziam um número (modesto). Kellyanne dizia outro (estratosférico). O âncora que a entrevistava na TV insistia na verdade dos fatos. Kellyanne, perfeitamente blasé, respondia que os números em que acreditava eram “fatos alternativos”.
Naquele momento, ri alto e murmurei: quem diria que os novos conservadores eram tão pós-modernos? Uso a expressão no sentido próprio: se a verdade não passa de uma quimera, o que resta são as múltiplas verdades que a minha subjetividade produz.
O discurso pós-moderno que a “nova esquerda” abraçou na década de 1960 tinha agora emigrado para a “nova direita” do século 21.
Nunca mais voltei a pensar no assunto. Até encontrar, com surpresa, o livro de Michiko Kakutani, A Morte da Verdade: Notas sobre a Mentira na Era Trump. Conhecia Kakutani das páginas do New York Times, onde o seu chicote crítico não poupava alguns escritores consagrados (Norman Mailer, John Updike, Jonathan Franzen etc.). O livro exibe a mesma erudição e a mesma inteligência ferina, procurando explicar as raízes históricas e intelectuais dos “fatos alternativos” de Donald Trump e sua turma.
E, entre essas raízes, Kakutani, uma progressista imaculada, não hesita em fazer um mea culpa. Na década de 1960, a contracultura foi importante ao questionar velhas convenções morais, sem falar do seu espírito saudavelmente anarquista e antiautoritário. Mas a contracultura também legou – ou, melhor dizendo, ressuscitou – uma desconfiança instintiva da razão e da racionalidade, entendendo ambas como meras construções burguesas, ocidentais, opressivas, ao serviço da classe dominante.
Na ânsia de derrubar falsos ídolos, o relativismo que brotou das universidades americanas, e que tanto desesperava conservadores como Irving Kristol ou Allan Bloom, defendia a radical subjetividade do eu, princípio e fim de todo o conhecimento e de toda a verdade.
Pois bem: os novos conservadores parecem ter aprendido a lição com os pós-modernistas do passado. Nada é sagrado para eles: nem a razão, nem a moral, nem a ciência, muito menos as elites intelectuais ou esses antros de criminalidade que dão pelo nome de “universidades”.
E quando escutamos os “fatos alternativos” de Kellyanne Conway ou as incontáveis “inverdades” do seu patrão, perguntamos seriamente se eles alguma vez leram Derrida.
A verdade, para eles, também se abre a uma multiplicidade de interpretações, a uma infinitude de sentidos, porque a “instabilidade” e a “indeterminação” das palavras autorizam tudo e o seu contrário.
No seu livro, Michiko Kakutani cita Mike Cernovich, um nome conhecido entre os trolls da alt-right e, segundo palavras do próprio, um fã das teorias pós-modernas.
“Se tudo é uma narrativa”, afirmou Cernovich em entrevista, “então precisamos de novas narrativas contra a narrativa dominante”. As palavras poderiam ter sido escritas por Jean-François Lyotard lui-même.
As consequências dessa atitude deságuam no mar do niilismo. Não no sentido em que a intelligentsia russa do século 19 usava o vocábulo, ou seja, como recusa de tudo aquilo que não pode ser provado cientificamente.
O niilismo contemporâneo nem a ciência respeita. A ciência é apenas mais uma forma discursiva entre várias formas possíveis. Sim, que interessa vacinar as crianças contra o sarampo quando a internet garante que as vacinas provocam autismo?
Estamos afundados em mentiras. Ou, polindo a linguagem, estamos rodeados de “pós-verdades” que marcham continuamente contra a “tirania da logocracia”.
Michiko Kakutani não oferece nenhuma resposta para o problema e a sua hostilidade a Trump não lhe permite ver um pouco mais longe. Mas eu, com a devida vênia a Kakutani, acredito que só é possível voltar a “construir” algumas verdades quando muitos intelectuais ou acadêmicos contemplarem seriamente onde nos trouxe a “desconstrução” da verdade. As ideias têm consequências, já dizia um (velho) conservador americano.
Em 1838, no seu célebre discurso ao Lyceum de Springfield, no estado de Illinois, Abraham Lincoln avisou: a sobrevivência da República depende da razão, de uma moral sadia e da reverência pela Constituição e pelas leis. Como programa para a América pós-Trump, melhor é impossível.
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